Escuto um barulho silencioso que me incomoda e está a todo instante nos afetando. Ele vêm tomando grandes proporções, de modo especial, no pós pandemia. Por um curto período, quando o medo pela COVID 19 reduzia, mas a “nova” rotina isolada ainda não desvanecia, tivemos uma doce ilusão de que a nossa “vida” voltaria um pouco mais leve, silenciosa, alegre, e, ao mesmo tempo, menos corrida e sufocada por trabalho e por ocupações quase que viciantes – que dão o duvidoso prazer de nos sentirmos útil. Vejo que poucas pessoas conseguiram se readequar a este novo momento, uma vez que nos restou uma sensação de insaciedade, de desafiar-se, de ser eficiente, talvez pela proximidade com nossa fragilidade e nossos limites, como nos revelou o vírus da COVID 19. Mas o fato é que a experiência dos Exercícios Espirituais (EE) tem sido passado por um especial desafio nesses tempos de conexão.
Em muitas casas de retiros Brasil afora, vi as nossas ofertas de Exercícios Espirituais retornarem com muita força, no último ano. Uma centena de oportunidades para experimentar e escutar a voz de Deus no mais profundo da vida; oportunidades para silenciar e descobrir os nossos ídolos e o quanto perdemos tempo com paixões que nos iludem e tiram o foco, como bem expõe Pe. Pablo d’Ors. A experiência do deserto é isto, nos revela o que de fato nos sustenta, trazendo a nossa verdade à tona. Mas, o silêncio desejado, durante os EE, fica cada vez mais raro na prática.
Conectar-se durante o retiro afeta a qualidade da oração?
Não é difícil encontrar exercitantes, de todas as idades, adictos à internet e às redes sociais; quem use o celular e ache que o Whatzapp não atrapalha o retiro. Há também quem aproveite para assistir às séries, que não viu durante o ano, ou mesmo atualize as suas fotos nas redes sociais – para que outros vejam que ele/ela está rezando.
A oportunidade de encontro e deserto, que deveria ser simples e cotidiana durante os EE, passa a ser um peso. A desintoxicação do on-line, da conexão constante gera ansiedade, falta de foco e alto nível de dispersão. Sem acesso à esse mundo, muitos exercitantes se transformam em “zumbis”; caminham, comem, ouvem os pontos de quem dá o retiro, mas a “vida verdadeira” está fora de si. Nestes momentos de retiro, a falta que sentem é mesmo da vida conectada, a interiorização fica em segundo plano.
Sem interioridade nem silêncio, não desbloqueamos em nós a vida nova e eterna.
Imersos no mundo online, podemos nos levar de volta à caverna de Platão, onde contemplamos as sombras em detrimento da vida real que nos habita e que está também fora. Pe. Pablo d’Ors, nos lembra que sem o silêncio, não irromperá em nós a nossa identidade mais profunda e, assim, correremos o risco de não perceber quando algo grandioso nos tocar.
Em tempos de sinodalidade, de conversação espiritual é preciso discernimento; e como alcançar uma escuta pessoal profunda, uma escuta sincera do outro sem oração nem silêncio? Desprovidos de interioridade, corremos o risco da não metanoia; e, sem transformação espiritual, podemos não perceber a necessidade de correção de rota ou de repensar o que está acontecendo em minha vida e vocação. Cardeal Tolentino vai dizer que o problema não é da oração, mas do humano. Diz ele que é preciso modificar o humano para que se ative a “peregrinação interior”, a crise é nossa e não da oração (Tolentino, Rezar de olhos abertos).
É preciso, mais do que nunca, fazer coro a Etty Hillesum no “ajudar a Deus nos ajudar”. Neste ano que se inicia, esta é uma decisão fundamental: ofertar espaço, criar oportunidade, desconectar-se, silenciar, colocar a atenção e saborear a presença nos levando a uma escuta da voz profunda que dá sabor novo e vida nova, desafiando toda manipulação da nossa vida e tirando o véu do cotidiano, mostrando a Deus no mais singelo e corriqueiro. Ele está no meio de nós.