PARTE 1
A primeira jornada da periferia para o centro
Jesus assumiu a história de seu povo desde dentro. Isto em com sua longa permanência no anonimato de Nazaré, adquiriu uma identidade, construiu uma história. Tinha passado.
A ida a Jerusalém, por ocasião da Páscoa, era o cume do sentimento religioso do povo, e ponto alto de sua comemoração anual. Jesus devia estar acostumado com essas caravanas anuais. Qual a diferença desta? Era a primeira que participava como homem, depois do seu Bar Mitzavah. Por isso, fica no Templo, sua casa. O primeiro sinal do conflito que sua ação desencadeará, mesmo no seio da família. Como ainda não chegara a sua hora, voltou para Nazaré para completar a formação.
Daqui se percebe o valor da história familiar, da história particular e pessoal. Nada acontece gratuitamente na vida das pessoas. Nada acontece gratuitamente na vida do povo. Jesus aprendeu com o povo, mergulhado na sua vida. O discípulo deve também ter a sua Nazaré e mergulhar na vida do povo para aprender a discernir os sinais de Deus!
Jesus formou a sua identidade pessoal e histórica, tomou consciência de pertença a um povo, na vida oculta em Nazaré. Isso lhe foi ensinado por José e Maria.
De José, provavelmente, recebeu a fé inquebrantável em Deus, aliada a uma fidelidade exemplar. Num país dominado por um império pagão, com autoridades religiosas corrompidas, com as promessas de libertação cada dia mais distantes, por certo a fé e a fidelidade de José foram de grande valia para a formação do caráter do pequeno Jesus.
De Maria, a serva do Senhor, por certo recebeu e aprendeu a capacidade do discernimento. Discernimento tão necessário para perceber os mínimos sinais da presença de Deus no meio do povo. Aliada a esse discernimento, talvez consequência deste, estava uma extraordinária capacidade de abertura para o novo. Daí que, mais tarde, pode perceber a importância de João Batista e ir a ele. Por fim, coroando essas duas capacidades, recebidas e aprendidas de Maria, a profunda liberdade frente às coisas, frente à lei, para seguir o que Deus lhe pedia. Assim não foi Maria? Tal mãe, tal filho!
Por outro lado, o episódio do Templo nos revela a capacidade de valorizar a fé do povo; Ele a valoriza porque a viveu também em seu lar. Já naquele tempo, o Templo dava mostras de rigidez e incapacidade para perceber Deus. Jesus fez essa experiência, embora, mais tarde, irá relativizar o Templo como lugar de adoração do Pai, conforme nos narra São João no episódio da Samaritana.
João faz a sua jornada do centro para a periferia
Deus se manifesta ao filho do sacerdote Zacarias e ele se apresenta como realizando a profecia de Isaías: Eu sou a voz que clama no deserto: preparai o caminho do Senhor!
Jesus, da escola da vida de Nazaré, percebeu a sua hora, a hora de Deus na pregação de João Batista. Era a sua hora! Aqui aparece o cotejamento entre a realidade – palavra e ações de João – e a Escritura – a profecia de Isaías. Jesus aprendera auscultar o povo. Por isso, agora soube ouvir João e perceber a hora de Deus.
Por que João Batista – filho de sacerdote – não utilizava o Templo para a sua mensagem?
- O Templo perdera a sua mobilidade, sua abertura para o novo. Estava por demais estruturado e havia muitos interesses a defender;
- Por isso mesmo, estava embotado e não mais sabia discernir os sinais de Deus no meio do povo. Perdera a sensibilidade para as manifestações de Deus, seguro de que estava na fixidez da Lei;
- Consequência disso, não tinha mais uma palavra de esperança ao povo sofrido e humilhado e que não via se cumprirem as promessas de Deus.
João vai à periferia e preconiza a conversão que se expressa no encontro da humanidade entre si, a fraternidade e a justiça. Fala ao povo na linguagem do povo. A estrutura embotada reage contra o novo: João é preso. A situação é sempre igual.
O filho do sacerdote Zacarias foi pregar na periferia. Seu discurso não era oficial, não estava legitimado pela Instituição Templo, que tentava desacreditá-lo e, por fim, com ajuda da autoridade civil, o põe na prisão. O descompasso entre carisma – João – e a Instituição – Templo – residia em que aquele respondia às reais perguntas do povo e esta respondia a perguntas não formuladas. As respostas de João diziam respeito a questões que o povo estava experimentando na própria pele: fome, frio, exploração dos coletores de impostos, opressão e domínio militar. O conflito atingiu o clímax com a prisão de João e sua consequente morte no cárcere. Mas, mata-se o profeta, não o Espírito. São Paulo vai encontrar pessoas batizadas no batismo de João.
Por outro lado, Jesus vai perceber que chegou a sua hora não por algum acontecimento emanado do Templo, mas da periferia, onde o povo, que ele conhecia e com o qual compartilhava angústias e esperanças, encontra resposta na pregação de João. Ele próprio vai ter um discurso e fazer um caminho não-oficial. Por acaso não vai suscitar surpresa que tenha tanta sabedoria sem haver frequentado escolas? Mas o povo dirá: Esse fala com sabedoria e com autoridade. Não é como os escribas e os fariseus. Também para ele haverá um conflito com a Instituição e será morto. Mas permanece vivo.
A realidade de João e de Jesus é uma esperança e um alento às nossas comunidades eclesiais de base que gestam um discurso cujo sujeito e cujo conteúdo é diferente, não-oficial. Seus integrantes não pertencem ao clero, nem têm curso de Teologia. Daí a perseguição.
O compromisso messiânico
Jesus fez o caminho do povo. Por isso, foi à periferia encontrar João. Deixou-se batizar, como todos e, neste gesto de profunda encarnação, encontrou-se consigo e com o Pai. Ali recebeu o Espírito do Senhor que o convidou a definir-se perante a missão que o Pai lhe confiava. É no meio do povo que o Senhor nos encontra; é do meio do povo que ele nos chama para discernirmos a nossa missão.
O deserto é o lugar da busca da identidade e do discernimento. Foi assim para Jesus e foi assim para os grandes apóstolos e profetas do cristianismo. O tentador lhe propõe maneiras de realizar a sua missão. Maneiras que, à primeira vista, são boas e mais eficazes. Contudo, a longo prazo, revelam-se traiçoeiras e levam a resultados distintos dos objetivos originais. Esse é o método do espírito do mal: entra pela porta do indivíduo, mas sai pela sua, frustrando os planos de Deus. Perante o tentador, Jesus se afirmou positivamente pelo caminho de Deus.
Deste modo, Nazaré é a expressão do caminho de Deus. Compromisso fundamental com os pobres e oprimidos. Ruptura com as expectativas oficiais sobre o Reino de Deus. Daí o inevitável conflito que marcará a vida de Jesus e que o levará à morte. Esse conflito estará presente na vida da comunidade, dos discípulos, da Igreja e da Companhia de Jesus.
Hoje ainda somos chamados a discernir o caminho a seguir: se o do tentador ou se o de Jesus, no compromisso conflitivo com os pobres e deserdados do mundo. A tentação do deserto é uma esperança para a comunidade: durante toda a vida Jesus teve que ir discernindo e optando. Assim também a comunidade.
Em Nazaré, o discurso temático de Jesus demonstrou o seu lugar. Lugar descoberto e assumido no discernimento do deserto, iluminado pelo Espírito Santo. Lugar de conflito, mas lugar de vitória sobre a morte. Lugar do Reino que se inicia escondido na pessoa, VÊ a sua situação, DIZ a sua palavra e CAMINHA em busca da libertação.
Os primeiros companheiros
O anúncio do Reino se faz na pobreza e no despojamento. Ao mesmo tempo, se faz acompanhado por obras que combatem a ação do Anticristo.
Por isso, Jesus chama do meio do povo para que os discípulos estejam com ele, para enviá-los a pregar e dar-lhes poder sobre os demônios. São João dirá: foram e viram…
A missão e o chamado devem ser discernidos no contato pessoal com Jesus Cristo. É do convívio íntimo com ele, do conhecimento íntimo dele, que o discípulo discerne a missão e adquire forças para o seguimento.
No anúncio do Reino, o discípulo sofre perseguições, afrontas e injúrias, mas o Espírito está com ele.
O discípulo não é mais do que o Mestre. Eis o núcleo do seguimento de Jesus e o cerne das Duas Bandeiras1.
O conhecimento de Jesus demanda tempo e dedicação. Por isso, Jesus dedica tempo, carinho e paciência para ensinar seus discípulos. Trabalha para superar neles a visão deturpada do Messias. Luta para que o grupo se abra para a universalidade da missão.
O caminho do Mestre é um caminho que não admite meio-termo. Por isso é um caminho conflitivo: quem caminha com ele, caminha no serviço, na humildade, na perseguição e na morte. Quem não caminha com ele compactua com os que o desejam matar. Essa realidade é percebida aos poucos pelos discípulos. Daí o seu medo e sua indecisão.
Apesar dessa percepção, ainda existe uma enorme distância entre a concepção de Jesus e a compreensão dos discípulos. O que os faz caminhar com ele, mesmo sem compreender tudo, é a confiança de que só ele tem palavra de vida eterna, conforme diz Pedro.
Jesus Cristo quando chama os discípulos, os envia para criar condições que favoreçam a presença do Reino e a combater aquelas ações que configuram uma ausência do Reino: isto é, aquelas situações que marginalizam pessoas, excluindo-as do pleno direito de pertencerem ao Povo de Deus.
Mais. Quando diz que cada um deve tomar a sua cruz e segui-lo, está dizendo que se deve assumir a própria vida. Ele não pede que se carregue a cruz dele, mas que cada um tome a sua própria cruz. Com ela, segui-lo no anúncio do Reino. A cruz – vida pessoal com todas as suas dores e alegrias – não é empecilho para que se anuncie o Reino.
Ele ensina como quem tem autoridade
A partir do Sermão da Montanha, o povo dizia: Ele ensina como quem tem autoridade. Não é o muito saber (ciência), mas o muito viver (vida prática) que confere autoridade ao discípulo. Esse muito viver ele o adquire do convívio intenso com o Cristo que vive em comunhão com o Pai. Por outro lado, a autoridade de Cristo provinha de seu profundo compromisso como povo, fruto de sua encarnação radical, que lhe munia de conhecimento e experiência daquilo que estava no coração do povo simples, oprimido e explorado.
Os pobres, humildes, desprezados, posto à margem da sociedade são bem-aventurados porque o Pai se compromete com eles e desce para vingá-los! Deus é o vingador dos pobres. Bem-aventurados, eles são o sal da terra e a luz do mundo e são chamados a superar a antiga lei pela instauração da lei interior da compaixão.
Onde acontece o Reino de Deus
Jesus é aquele que semeia no meio do povo a Boa-Nova do Reino. Anuncia a todas as pessoas a partir de sua própria realidade. Não tem pressa. Dá tempo ao tempo para ver que fruto sai de cada pessoa, para ver que destino cada pessoa dá à semente que lhe foi confiada.
Jesus é o Reino que emerge no coração do mundo. Faz-se simples, faz-se pequeno, mas sua ação é definitiva. Penetra tudo, envolve tudo, desde baixo, desde dentro da vida do povo. Ele é a concretização do Reino que exige radicalidade para aceitá-lo e assumi-lo. Quem não estiver disposto a deixar tudo, não o terá plenamente.
O Reino é a ação maior – ao mesmo tempo misteriosa e escondida – da graça de Deus no meio do mundo. Será oferecida a todos, mas muitos não a acolherão. Nestas parábolas, Jesus se identificou plenamente com o povo. Os discípulos também devem fazer o mesmo.
Na festa do pobre (João, 2)
Maria estava no meio do povo, por isso percebeu a sua necessidade2. Jesus partilhava da festa do povo e por isso pode fazer com que a festa continuasse.
A grande capacidade para festejar com o povo reside no fato de estar inserido no seu meio. Isso fez Jesus. Ele partilhava a vida, por isso podia celebrá-la na festa. E na festa do pobre, que é a celebração do pequeno diante de Deus.
Hoje a comunidade é a seguidora de Jesus, por isso cabe a interrogação: sabemos festejar com o povo? Ou melhor, partilhamos a vida do nosso povo simples, para poder celebrá-la na festa?
No sofrimento do pobre (João, 9)
Jesus está no meio do povo, comprometido com o seu destino. Neste compromisso, não hesita em sujar as mãos para que o povo veja.
O cego viu3. Libertou-se partilhando a liberdade de Jesus que relativiza o sábado. Livre, foi enviado ao povo.
Frente à liberdade, duas atitudes: medo e não compromisso – é o caso dos amigos, conhecidos e pais do cego; rejeição a priori – é o caso dos fariseus que expulsaram o cego liberto. Os fariseus procuram justificar a rejeição: é um pecador, não sabemos de onde vem. Estribam-se na lei para rejeitar o profeta que surge do povo, que vem da periferia. Os detentores da fala oficial rejeitando o sujeito da fala do povo.
Quantas pessoas que., hoje, se encontram conosco são realmente livres? Quantas saem livres?
Na morte do povo (João, 11)
Jesus sabia que, indo a Betânia4, entregar-se-ia nas mãos dos judeus. Mesmo assim não se furtou à vontade divina, nem à amizade. Quem ama arrisca a vida pelo amado.
Os discípulos, embora não atingissem todas as dimensões das ações de Jesus, perceberam esta entrega da vida: vamos e morramos com ele!
Os sinais de Jesus, mediações de sua proximidade com o pobre, não atingem a plenitude da comunicação. São mediações frágeis. Cada pessoa os interpreta do seu lugar social específico. O mesmo acontece com as suas emoções. Daí que, enquanto alguns percebem e acreditam em Jesus, outros continuam na sua posição e o denunciam aos judeus. Estes o condenam à morte.
Também nós, muitas vezes, compreendemos mal os sinais de Deus na história das pessoas. Outras vezes, quando tentamos transmitir esses sinais, somos mal compreendidos e mal interpretados porque a nossa mediação é ambígua e frágil.
O caminho definitivo da periferia ao centro5
Jesus, que entra em Jerusalém, é aquele que vinha da Galileia e fora batizado por João. Ele veio da margem para o centro, a fim de trazer a ele a mensagem dos pequenos. Não teve medo de apostrofar o centro por estar vivendo às custas dos pequenos sem produzir frutos de vida para o povo.
O seu poder é o poder de quem conhece o Pai, conhece o povo e conhecia a malícia e a hipocrisia de quem se beneficia da fé do povo para viver bem. O único que conta é o dom da vida, entregue a Deus em nome dos pobres.
A autoridade de Jesus é contestada pelos fariseus. Sua autoridade não vem de um mandato oficial, mas vem da indignação ética do pequeno frente à manipulação de sua fé, à exploração de sua vida, ao cerceamento de sua liberdade. Frente ao poder central que oprimia a vida do povo e não lhe dava fruto para matar a sua fome, Jesus se insurge e se indigna. Não precisa apelar para outro mandato que não o clamor que sobe aos céus desde a boca dos pequenos.
As multidões o escutam encantadas. Ele se torna a voz dos que não têm voz e não podem dizer aos escribas e fariseus que não aprovam os seus desmandos. Jesus não nega a palavra a ninguém, mas a todos dá a oportunidade de se tornar irmão (acolher o Reino).
Hoje, frente ao clamor do povo pobre, a Igreja se manifesta. Muitos argumentam com sua autoridade para falar sobre economia e política. Ela, a exemplo de Jesus, não necessita de outra autoridade que a indignação ética frente à morte do pequeno, frente à ganância daqueles que fazem da morte do povo a sua vida. Calar será incorrer na condenação de Deus.
No Evangelho de João, quando Jesus entra em Jerusalém, a decisão da morte está tomada. As multidões o aplaudem e aclamam. Os discípulos o seguem, mas não compreendem. Os gregos querem vê-lo. Os fariseus decidem matá-lo. Ele está só e conturbado. Por isso reza ao Pai. João diz mais: apesar dos sinais os judeus não creram. Quer dizer, agora não haverá mais sinais, a não ser o sinal maior: a Ressurreição. Jesus percebe isso.
É questionante perceber que alguns judeus creram nele, mas não o confessaram por medo de serem expulsos da Sinagoga. Diante da radicalidade do seguimento de Jesus Cristo, muitas vezes temos medo de perder a nossa posição privilegiada e não o confessamos.
Jesus veio da periferia para missionar o centro. Não dormia no Centro, mas à noite voltava à periferia. O centro é terra de missão, ontem e hoje. Este é o testemunho do evangelista Marcos. Aliás, segundo Marcos, quando entrou em Jerusalém. Jesus trazia a síntese de sua vida. Isto é, o Jesus que fora batizado por João e exercera o seu ministério na periferia, entre os pobres e desprezados de Israel, agora entrava a Casa do Pai para oferecer a vida. Daí o seu diálogo temático com aqueles com os quais passara o seu ministério dialogando. Era como se fizesse uma última tentativa para fazê-los ver a irrupção do Reino de Deus.
1 Meditação fundamental nos Exercícios Espirituais propostos por Santo Inácio de Loyola.
2 O texto refere-se ao episódio das Bodas de Caná, na Galileia, onde Jesus transformou água em vinho.
3 Episódio da Cura de um cego de nascença, no Templo.
4 Casa de Marta e Maria, onde ressuscitou o irmão delas, morto há dias.
5 Entrada de Jesus em Jerusalém. Os cristãos celebram a data como Domingos de Ramos.