"Quem quiser reformar o mundo comece por si mesmo."

Santo Inácio de Loyola

Do estábulo ao Patíbulo – O percurso do pobre!

Sempre que realiza o seu percurso da periferia ao centro, para evangelizá-lo, o pobre faz o seu percurso do estábulo ao patíbulo. Este foi o percurso de Jesus de Nazaré, de Jesus Cristo; este é o percurso do pobre ontem, hoje e sempre!

Prólogo

Na Páscoa de 2023, para a meditação do Sábado Santo (Sábado de Aleluia) fiz um exercício de escrever como notícia jornalística o que havia acontecido na véspera, no Gólgota.
A pergunta que não queria calar era: por que ele foi assassinado na cruz? O que tinha feito, dito e proclamado que merecesse a penal capital dos escravos. Não morreu como judeu (apedrejado) nem como os romanos (decapitado), mas como um escravo, esquecido por todos, crucificado.
Meditando sobre a resposta, lembrei-me de um texto que, há muito, escrevera.
Corria o ano de 1984. Estava realizando o mês dos Exercícios Espirituais que todo jesuíta deve fazer durante a etapa de formação chamada Terceira Provação 1. Meditando sobra a vida de Jesus, a quem somos chamados a seguir com disponibilidade e amor, esbocei um trajeto da vida de Jesus que chamei do Estábulo ao Patíbulo. Vi que ele poderia responder aos questionamentos sobre os motivos da morte de Jesus.
Esse trajeto, agora apresento para as nossas reflexões. É importante frisarmos que esse texto não é um tratado de teologia, mas apenas uma meditação pia para alegrar a vida de alguém solitário e, quem sabe, perdido. Nada mais, nada menos uma Reflexão espiritual.

1 Terceira Provação

Antes de se incorporar definitivamente na Companhia de Jesus, Ordem dos Padres Jesuítas fundada por Santo Inácio no Século XVI, o jesuíta deve realizar três formações: Noviciado (onde realiza pela primeira vez o mês de exercícios (chamado popularmente de Retiro Grande), o Magistério (onde por dois anos se compromete num trabalho apostólico junto com uma comunidade formada: colégio, universidade ou uma paróquia), e a Terceira Provação (onde realiza pela segunda vez o mês de exercícios e estuda mais profundamente os Estatutos e Normas da Congregação). Depois disso, recebe a permissão (ou não) de professar definitivamente seus votos de pobreza, castidade, obediência na Companhia de Jesus.

O que os amigos dizem dele

São três pessoas, três testemunhos e três pontos de vista distintos. Entretanto, cada testemunho está ligado ao outro por uma característica comum: cada um desses homens dá um testemunho que aponta para uma compreensão de Jesus Cristo e expressa um tipo de relação que eles tiveram com Jesus.
João Batista é o servo que encontra Jesus quando batiza e anuncia o Messias na periferia do mundo. Ele se compreende como o precursor, o anunciador, aquele que deve diminuir para que Jesus possa crescer. Por isso mesmo, quando Jesus aparece, João se desfaz de seus melhores discípulos para que esses sigam ao filho do carpinteiro de Nazaré. Ele é o MESSIAS!
O apóstolo João é o discípulo amado que descobre Jesus como a Palavra Eterna que arma a sua tenda na história das pessoas. Essa descoberta marca a sua vida e define o seguimento que ele fará de Jesus. A partir do primeiro encontro, João não mais o abandonou. Ao longo de três anos foi crescendo no conhecimento e no seguimento de Jesus Cristo. Ele é o AMOR!
O apóstolo Paulo não encontrou, foi encontrado por Jesus. Não conviveu com Jesus na vida pública; foi chamado para testemunhar a respeito de Jesus depois da Ressurreição. Mas foi ele que Jesus encarregou de anunciar o seu nome aos gentios. A capacidade de mudança, a coragem para assumir o novo marcou profundamente a vida de Paulo. De sua força e de seu compromisso adveio a abertura do cristianismo para o mundo Greco-romano. Ele é o FILHO DE DEUS!
Hoje pessoa cristã deve definir, ou necessita definir, o tipo de relação que mantém com Jesus; definir as características que essa relação apresenta. A partir da relação, surge a qualidade do testemunho e a consistência do seguimento. No aqui e agora da América Latina, Jesus é aquele que traz a mensagem de esperança na longa noite do exílio, mas Jesus é aquele que dá consistência e sentido para a luta diária contra as forças que escravizam a pessoa humana e a impedem de realizar-se plenamente como criatura de Deus.

Como ele se apresenta às pessoas

Ao longo de sua vida, Jesus vai se definindo às pessoas. Contudo, se olharmos bem, esta definição possui uma característica muito especial. Jesus assume títulos, define-se a partir de coisas necessárias aos pobres e desterrados do mundo.
Por quê?
Jesus nos encontra na periferia do mundo, no meio dos pobres e marginalizados. Ele caminha no meio do povo e por isso conhece aquilo que mais é necessário aos pobres e humildes de Javé. Daí que se afirme como Pão, Vida, Água, Luz, Pastor etc.
No meio de uma população que passa fome, definir-se como Pão é devolver a esperança e o sentido da vida aos corações desesperados. Ao mesmo tempo, definir-se como Vida é a consequência natural de ser pão, ser água e ser luz.
Profundamente imerso na vida do povo, ele percebe que esse morre diariamente por falta de condições humanas para viver. Ao mesmo tempo, vê a desorientação dessa gente simples e pobre que não enxerga perspectivas para o futuro. Daí que se apresente como luz. Frente aos desmandos dos pastores de Israel que, segundo suas palavras, era guias cegos guiando cegos, Jesus afirma-se como o Bom Pastor.
São essas realidades que o povo mais necessita. E necessita hoje neste Brasil tão pobre e marcado por tantas injustiças.
E os cristãos, encarregados de continuar a missão de Jesus, sabem o que o povo necessita? A Igreja sabe? Por outro lado, somos pobres e Jesus caminha conosco? Ou somos ricos e tentamos caminhar sozinhos, sem a sua presença?

A dinâmica da Encarnação de Cristo

A carta de São Paulo aos Filipenses 2,1-11 nos apresenta a dinâmica da Encarnação de Jesus no meio das pessoas. Ter os mesmos sentimentos que ele é assumir esta dinâmica na vida.
O que não é assumido não é sanado – disse um Padre da Igreja! Por isso, Cristo desceu ao porão da humanidade, assumindo nossas dores, para desde lá subir purificando tudo, sanando tudo!
Hoje o grande apelo ao povo cristão é, com Cristo, descer ao porão da humanidade e, desde lá, fazer acontecer o Reino de Deus.
Nessa dinâmica encarnacional, Cristo encarna-se na periferia da periferia do mundo. Escolheu o pequeno, enquanto os grandes estavam preocupados com seus interesses e suas conquistas. Assim é Deus. Escolhe o pequeno para salvar o grande. Por isso, o pequeno é belo, o pequeno precisa de atenção e acolhimento!
A comunidade cristã acompanha Jesus nesta aventura ao porão do mundo para resgatar o mundo dos pobres e dos oprimidos.

Ele nasce no meio da pobreza

Jesus nasce no meio das pessoas pobres. Esse será o lugar social desde onde Jesus olhará o mundo; lugar desde onde falará e julgará o mundo das pessoas. Esse lugar deve ser o do discípulo e da discípula!
O exílio, a perseguição, a incompreensão serão as constantes na vida de Jesus. Quem o segue terá o mesmo destino. Os poderosos, os que detêm o poder político, religioso e econômico não o aceitam. Antes, o perseguem e querem matá-lo.
Jesus encarna-se profundamente na vida do povo, mas esse não o conhece. Isso será feito pelos estrangeiros.
Impressionante a figura de José! O esposo de Maria mostra-se um personagem secundário, guiado por Deus. Permanece sempre no segundo plano. Confia e ama. Mesmo em Mateus, que centra a sua narração em José, ele permanece oculto.
Por outro lado, como disse alguém, Deus é devagar 1. Isto é, ele entra de mansinho na história humana. Algo de muito grande, algo de novo está acontecendo, e só os pobres e os pequenos percebem o seu significado. É o caso dos pastores.

A entrada em um povo

Quando nasceu, Jesus entrou em um povo. Recebeu um nome, tinha uma genealogia, foi reconhecido oficialmente. Na alegria de José e Maria, a brutalidade do sofrimento na profecia de Simeão. O povo que o recebe, o rejeitará definitivamente. A autoridade religiosa que hoje o acolhe, amanhã o entregará à morte por blasfemo. Pior ainda, nem lhe dará a morte de um judeu, mas a de um escravo.
Na Anunciação, o anjo disse que o menino seria grande e herdaria o trono de Davi, seu pai. Até o momento da apresentação no Templo, nada apontava para essa grandeza. Jesus nascera só, as únicas pessoas que o reconheceram foram os pastores – gente desprezada em Israel -, o sacerdote cumpre o ritual como muitos outros, sem demonstrar nada de especial. As únicas pessoas que dizem algo são Simeão e Ana, dois velhos. Ana, uma viúva que não possuía ninguém por ela. Daí o espanto de José e Maria por tudo o que se dizia do menino. Com a apresentação no Templo, Jesus assumiu, formou parte de um povo. Isto é, assumiu integralmente a história desse povo, trilhando seus caminhos e pondo-se sob o domínio de suas leis e tradições. Poder-se-ia dizer que assumiu a ingenuidade 2 do povo para, desde ela, caminhar para a libertação. Essa assunção radical traz consigo o conflito, já expresso na profecia de Simeão.
Ao entrar num povo, Jesus o fez desde a periferia. Seus pais o resgataram com a oferta dos pobres. Mais ainda, assumiu esta vida de maneira silenciosa e simples. Não teve pressa. Deus é devagar e seus caminhos, seus critérios de grandeza não são os nossos, são distintos. O povo é devagar e caminhar com ele demanda tempo e paciência.
Não foi o sacerdote – mediador oficial entre o povo e Deus – quem percebeu o mistério que se revelava no menino que se lhe era apresentado. Ao contrário! Foram duas pessoas do povo que se manifestaram sobre a grandeza de Deus. O Espírito de Deus fala onde quer e Deus se manifesta àqueles a quem quer: os pobres e os humildes, os desprezados da terra.
A oferenda do resgate foi de pobres, estrangeiros, talvez um pouco assustados com a grandiosidade do Templo. Os pobres hoje também não têm condições de resgatar seus filhos à sociedade que os marginaliza e explora. Mas, mesmo assim, sentem a alegria quando os vão batizar. O Batismo é para eles o reconhecimento público de que o filho existe e eles são os pais.

Perseguido, exila-se no Egito

A experiência do exílio deve ser tremenda. Terra estranha, língua desconhecida, costumes e culturas distintas; o indivíduo sente-se arrancado de suas raízes. Penso nos milhões de exilados na América Latina e no mundo.
Não seria exílio o deslocamento de nossa gente do norte para o sul; de todos os cantos para o Mato Grosso, Rondônia, Acre? O que são os haitianos e venezuelanos no Brasil, se não exilados?
Assim como o exílio de Jesus foi uma esperança e um consolo para a comunidade perseguida de Mateus, assim o será para o nosso povo pobre, explorado, marginalizado e exilado.
José, Maria e Jesus devem ter sido acolhidos por alguém no Egito. Quem acolhe o nosso povo? Quem lhe ajuda a resgatar suas origens? O compromisso com esse povo humilhado é o que caracteriza o seguimento de Jesus.
A epopeia do povo nordestino humilhado em São Paulo, verdadeiro exílio dentro do próprio país, é cantada numa canção. Por outro lado, a aventura de latino-americanos exilados torna a América Latina uma terra estranha, uma terra de exílio. Os exilados são acolhidos, por um lado; por outro, são explorados. Foi assim com a família de José? Em todos os casos, Jesus fez essa experiência e conheceu o caminho.
Egito, Terra de Exílio. Os descendentes de Abraão, circuncidados, foram para lá. Lá foram escravos e de lá saíram para estabelecer a Aliança e tomar posse da Terra que Deus lhes tinha prometido.
Jesus, circuncidado, fugiu para o Egito. De lá voltou para a Nova Aliança no seu sangue, para a formação de um Novo Povo! Jesus desandou o andado3. Foi ao início para recomeçar.

1 Título de um livro do Pe. Hilário Dick, SJ
2 Metáfora usada por Paulo Freire para significar a missão educacional
3 Título de um livro sobre comunicação publicado pelas Edições Loyola em 2022.