"Quem quiser reformar o mundo comece por si mesmo."

Santo Inácio de Loyola

Ter e possuir [EE 234]

Maria de Fátima B. M. Barbuto  

Nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola [EE], na Contemplação para alcançar Amor (ad Amorem) [EE 230-237], encontramos a frase: tudo o que tenho e possuo, ao final do 1º ponto. Santo Inácio foi redundante ou será que ele quer manifestar uma diferença entre ter e possuir (tener y poseer)?  

Usamos o ter e possuir, muitas vezes, de modo indistinto no cotidiano; são sinônimos, tanto em português quanto em espanhol. A etimologia e o significado destes verbos são sim semelhantes, mas há uma distinção entre eles.  

Ter, no português medieval, origina-se do verbo habere, significando adquirir, alcançar e obter; do latim tenere o significado é segurar, ter, andar com alguma coisa; estar na posse de. Em espanhol, tener significa ter, segurar, agarrar algo. No espanhol antigo significava também controlar, guardar, cuidar, defender algo.  

Percebemos então que ter implica posse, manter algo e está relacionado a algo físico, corporal, concreto e, geralmente, está associado ao momento presente, ao agora: eu tenho um casaco.  

Possuir, do latim possidere, significa ter ou reter em seu poder; apoderar-se; ato ou efeito de se apossar de alguma coisa; propriedade; estado de quem possui uma coisa, de quem a detém como sua ou tem o gozo dela; ser naturalmente dotado de. Em espanhol, poseer, é ter algo em seu poder; significa ainda ostentar, gozar, desfrutar, guardar, conservar, dispor. É usado mais nas linguagens formal e jurídica.  

Vemos que possuir pode ser relativo a algo físico, um objeto, mas também como potencialidade, algo que forma parte de sua pessoa, algo interior, como uma capacidade ou dom. Neste sentido, podemos inferir que possuir tem um significado um pouco diverso do ter, significando ter-se algo em seu interior, ou seja, diz respeito a uma faculdade do ser humano, que vai além da corporalidade.  

Santo Inácio, ao escrever ter e possuir, parece abarcar o que temos e o que somos, as coisas materiais, as posses concretas, mas também os dons, qualidades e capacidades, ou seja, ele sinaliza toda a nossa relação com o mundo:  

– ter, a relação e uso das propriedades materiais  

– possuir, a relação e uso dos dons, capacidades, sentimentos e desejos.  

No início da oblação [EE 234] lemos: Tomai, Senhor, e recebei toda a minha liberdade, a minha memória, o meu entendimento e toda a minha vontade. A memória, o entendimento e a vontade são faculdades da alma que possuímos; nos EE elas estão envolvidas em cada oração, conscientemente, pois estão contidas na oração preparatória e são reforçadas pelos preâmbulos.  

Escrevendo “ter” Santo Inácio nos alerta para o tanto quanto, a necessária indiferença inaciana, o uso das coisas a serviço do Reino, para a maior glória de Deus. Como todos os bens e dons descem do alto [EE 237], o “possuir” nos recorda que tudo é dom tudo é graça, que devemos viver em atitude de humildade e gratidão. 

Imagem: Pixabay