"Quem quiser reformar o mundo comece por si mesmo."

Santo Inácio de Loyola

A Espiritualidade Inaciana presente no Sínodo

Pe. Miguel Martins, SJ, participa da segunda fase do Sínodo sobre a Sinodalidade, no Vaticano

Edson Carvalho Guedes
Coordenador Nacional da CVX no Brasil

Foi no mês de outubro, nos idos anos de 1962, que o Papa João XXIII abria o Concílio Vaticano II. Já se passaram 62 anos desse evento que mudou o jeito de ser igreja. Uma leitura apressada da história poderia nos levar a pensar que o desenvolvimento de grupos sociais, sociedades e da própria humanidade acontece de forma gradual, como se estivéssemos subindo (ou descendo) uma grande rampa, onde cada passo nos levasse a um estágio à frente (ou atrás). Isso acontece na maior parte do tempo, mas a história é também feita de saltos. Não apenas um salto para um degrau bem alto, a exemplo daqueles que encontramos nas arquibancadas dos estádios. Vez ou outra, muito raramente, o ser humano ou grupos humanos conseguem dar saltos tão altos que são capazes de pular obstáculos ou muros que os impediam de ver o que existia do outro lado. 

É muito provável que a igreja e as mais de duas mil pessoas que participaram do Concílio Vaticano II não tivessem ideia do outro lado que esse Concílio levaria. O que aconteceu ali foi um salto qualitativo de tamanha monta que já não poderia voltar atrás. O Espírito Santo de Deus havia conduzido sua Igreja para olhar para o mundo como nunca fizera antes, conduzido a trilhar caminhos pouco ou quase nada percorridos. Era um novo modo de estar no mundo e de seguir Jesus Cristo. 

Avançamos muito enquanto Igreja, enquanto filhos de Deus comprometidos com o Reino de paz, de justiça e de fraternidade. Uma Igreja entendida e sentida como “povo de Deus”, num forte apelo a ser sal e fermento no mundo. Muitos muros caíram por terra! Novas aprendizagens foram necessárias. O Verbo de Deus mostrou que não havia se encarnado apenas no início da nossa era, mas é um Deus que age na história, dialogando com as várias culturas e tempos da história, sempre anunciando o amor de Deus por nós. 

Estamos nós, também em um mês de outubro, acompanhando um novo Sínodo. O apelo que o Papa Francisco nos faz agora é o da escuta. Não se trata de ouvir qualquer voz. O apelo é para que possamos escutar o que o Espírito Santo diz à sua Igreja e ao mundo. Mas como isso é possível? O que temos aprendido, desde as primeiras etapas desse novo Sínodo, é que Deus fala ao coração e que Sua mensagem pode ser comunicada por pessoas que se encontram e se dispõem a ter conversações espirituais ou “diálogo no Espírito”. 

Nós temos um grande mestre que nos ensina esse processo dialógico de buscar e encontrar a vontade de Deus em nossas vidas. Foi Santo Inácio que deixou escrito e nos ensinou o modo para cada um e cada uma vencer a si mesmo e orientar sua vida no seguimento de Jesus. A oração inaciana é um modo sentir e ouvir o que Deus nos diz.  A oração inaciana considera a presença de Deus no início, no meio e no fruto que alcançamos com ela.  

O que Santo Inácio nos ensina nos Exercícios Espirituais é que nossa mente e nossos afetos, muitas vezes, estão orientados em uma direção que nos afasta do amor do Pai e dos irmãos e irmãs. E o primeiro movimento a que somos chamados nos Exercícios é tomar consciência da nossa pequenez e do amor misericordioso de Deus. 

A Igreja sinodal a que o Papa Francisco nos inspira também nos sugere uma consciência profunda das nossas limitações e que somente com a ajuda de Deus podemos transcender ao que nos tornamos. Quando cada um de nós e a Igreja toma consciência das próprias limitações e do amor infinito de Deus, abre-se a possibilidade de ver o outro com um olhar humilde e misericordioso. O outro não é menor ou inferior, é alguém infinitamente amado por Deus.  

Assim como nos Exercícios Espirituais, a conversação espiritual não pode ser entendida como um método ou uma técnica para se chegar a consensos comunitários. O que se busca nos Exercícios, assim como no diálogo espiritual, é buscar e encontrar a vontade de Deus. 

A experiência da Primeira Semana dos Exercícios nos ensina que nossas ideias e nossos afetos precisam ser iluminados pelo Espírito Santo para que possamos discernir o que é de inspiração de Deus e o que é resultado de interesses mesquinhos, mesmos maquiados de boas ações. Do mesmo modo, em uma conversação espiritual, é preciso um coração humilde e sensível à voz do Senhor para nos mostrar quais ideias e discursos não estão alinhados à vontade do Pai.  

O centro da experiência dos Exercícios Espirituais propostos por Santo Inácio é a vontade de Deus. Na Segunda Semana buscamos contemplar a vida de Jesus e discernir moções e palavras que nos orientam ao Seu seguimento. O mesmo ocorre com a conversação espiritual, adotada no Sínodo. Trata-se de uma escuta espiritual ou, assim como nos ensinou Santo Inácio, de um discernimento espiritual. 

As pessoas familiarizadas com a espiritualidade inaciana já acostumaram falar, ouvir e praticar o discernimento espiritual em suas vidas. Essa atenção à vontade de Deus em nossas vidas é algo contínuo. Todavia, em alguns momentos da nossa história, sentimos necessidade de um discernimento mais profundo, que envolve decisões que mudam o curso da nossa vida. Acontece quando somos interpelados a assumir uma nova missão, deslocamento para outro lugar ou mudança de estado de vida.  

O discernimento nessas ocasiões exige, mais do que nunca, conversa com alguém. Inácio nos ensina a importância de confrontar aquilo que ouvimos na oração com um(a) acompanhante espiritual. Compartilhar com alguém nossas moções e o conteúdo das nossas orações diminui o risco de uma conversação solipsista, fechada em nós mesmos. 

O mesmo ocorre no Sínodo da Igreja. Começou no ano passado e continua nesse ano. Nesse encontro sinodal, pessoas se encontram, falam, escutam. Embora possa parecer simples o movimento de escutar a fala do nosso irmão e irmã, discernir a vontade de Deus naquilo que se escuta exige uma atenção espiritual, um auscultare, dando atenção ao que vem de dentro, buscando ouvir o e com o coração e não apenas com a razão. 

Nesse diálogo espiritual se faz necessário um(a) acompanhante espiritual. O que está presente nesse momento da Igreja não é um discernimento, semelhante ao que fazemos em nosso cotidiano. Assim como aconteceu no Concílio Vaticano Segundo, o Sínodo da Igreja de hoje nos convida a discernir sobre sua vida e sua missão no mundo no terceiro milênio. Assim como Santo Inácio nos ensina, a presença e a escuta sensível de outra pessoa sobre o que Deus fala ao coração nos ajuda a neutralizar a voz do próprio ego ou as ideias oriundas de movimentos que não têm origem no Bom Espírito. 

Assim acontece também no Sínodo. Algumas pessoas foram convidadas para ouvir e auxiliar no discernimento que está sendo feito. Uma dessas pessoas é o Pe. Miguel Martins, padre jesuíta. O Senhor o preparou para muitos serviços na Igreja, dentre elas o de acompanhante espiritual. Aprendeu ao longo da vida, no encontro com as pessoas, auscultar a voz que vem de dentro. Atento ao que Deus fala no fundo do coração das pessoas, consegue ajudar cada um e cada uma a perceber os sinais de Deus na vida e no coração. 

Dentre outras missões, Pe. Miguel exerce o serviço de Assistente Eclesiástico das Comunidades de Vida Cristã (CVX) no Brasil, uma organização de leigos e leigas que buscam servir a Deus, discernindo Sua vontade por meio da espiritualidade inaciana em pequenas comunidades. Na CVX, ele tem aprendido e ensinado que a conversação espiritual converge para o discernimento comunitário, uma busca incessante de fazer o bem que o Senhor quer. 

A formação sólida, própria da Companhia de Jesus, acompanhada de uma espiritualidade sensível, atenta aos sinais de Deus, fez de Pe. Miguel uma pessoa delicadamente talhada para ajudar as pessoas, comunidades e a Igreja a dar saltos. Em suas entrevistas sobre o Sínodo ficou clara a sua percepção de que a Igreja está diante de desafios inéditos, diante de alguns obstáculos que não poderão ser transpostos senão por uma profunda atenção à voz de Deus e uma determinação clara de responder aos apelos que o Senhor faz à Igreja para esse terceiro milênio.   

Peçamos a Deus que nos dê um coração de carne, não de pedra. Um coração sensível aos desafios que o mundo apresenta à Igreja, mas também um coração atento a sentir e ouvir a Sua vontade. Talvez estejamos vivendo um daqueles momentos da história em que somos interpelados a dar saltos, a transpor barreiras aparentemente intransponíveis. O que haverá do outro lado? É possível que não consigamos ver com total clareza o que virá, mas é o Senhor que move nessa direção, não há que termos medo ou insegurança, Ele estará conosco!