"Quem quiser reformar o mundo comece por si mesmo."

Santo Inácio de Loyola

“A Parábola do Bom Samaritano interpela nossa liturgia” ou…

Há mais de dois milênios, a Igreja tem proclamado, com fervor, a presença visível de Cristo, por meio dos sinais sacramentais, na liturgia. Essa concepção, mencionada por São Leão Magno, um dos primeiros estudiosos da teologia litúrgica, nos convida a mergulhar em uma reflexão profunda sobre como “aquilo que era visível em nosso Redentor agora se manifesta nos mistérios”. Recentemente, essa ideia foi reafirmada pelo Papa Francisco em sua carta apostólica intitulada “Desiderio Desideravi: sobre a formação litúrgica do Povo de Deus”. Nela, o pontífice exalta que “desde o início, a Igreja compreendeu, iluminada pelo Espírito, que tudo que é visível em Jesus, o podia ser visto com os olhos e tocado com as mãos. Suas palavras e seus gestos, a concretude da Palavra encarnada, havia passado para a celebração dos sacramentos”.
Entre o passado e o presente, a Igreja mantém seu foco inabalável na importância da visibilidade de Cristo por meio dos sinais sacramentais na liturgia, e assim será até o fim dos tempos. A função primordial da liturgia é, por meio desses sinais sacramentais, apontar o que a encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo nos revelam sobre a natureza de Deus e sua atuação na história e promover o encontro dos homens e mulheres de todos os tempos com o Filho de Deus.
Agora, é necessário questionar se, ao nos unirmos para celebrar a liturgia cristã, estamos verdadeiramente vivenciando os eventos históricos que revelam, por meio de Jesus Cristo, o amor fiel que Deus tem por nós, conforme nos contam os Evangelhos e todo o Novo Testamento, ou se nos perdemos em alegorias e representações vazias.

Um homem à beira de um caminho

Nesta reflexão, coloco a parábola do Bom Samaritano – uma das mais encantadoras e provocativas do Evangelho – como uma ferramenta para avaliarmos se a nossa vivência litúrgica tem sido influenciada por Jesus Cristo e se temos nos tornado seus seguidores.
A parábola do Bom Samaritano é amplamente conhecida; inúmeras pregações já foram feitas, livros foram escritos e transformações surgiram com base nesse ensinamento. O relato começa com uma situação dramática: um homem à beira de um caminho, gravemente ferido. Duas pessoas passam por ele: um sacerdote, um intermediário entre os homens e Deus, e um levita, dedicado ao serviço do Templo. No entanto, ambos são incapazes de ajudá-lo. Eles simplesmente se afastam e seguem seu caminho.
Por esta razão, Jesus decidiu advertir e denunciar um tipo específico de comportamento desumano que afeta indivíduos pertencentes a uma religião, o qual, no passado, também afetou os membros do Templo de Jerusalém e agora afeta aqueles que frequentam a Igreja. O sacerdote e o levita, ambos bem familiarizados com a Lei divina à qual prestavam serviço, ignoraram por completo a exigência de humanidade no tratamento do próximo. Nenhum dos dois se sentiu impelido a ajudar o homem quase morto, caído no caminho.
O fato de terem participado de rituais religiosos no Templo não os levou a se comprometerem com o próximo em extrema necessidade. Dessa forma, também surge a dificuldade em explicar como pessoas profundamente religiosas, que se orgulham de serem assíduos frequentadores da Igreja, comparecendo às missas todos os domingos e em outros dias de festas religiosas, podem, ao mesmo tempo, demonstrar desinteresse pelas questões do mundo, pelas injustiças enfrentadas pela sociedade e pelo sofrimento do povo.

Um coração cheio de compaixão

De fato, a contradição daqueles dois indivíduos de origem judaica, o sacerdote e o levita, na época de Jesus, embora distante no tempo, ainda persiste entre os cristãos, cujo comportamento nas relações fraternais deixam muito a desejar. Interessante é que o amor que se manifestou em Cristo e, consequentemente, em todos os sacramentos, requer comprometimento, que se reflete no dia-a-dia através da atenção em relação aos outros.
Será possível então fazer uma distinção entre a celebração dos sacramentos vivenciada como portadora de Deus e, como tal, veiculadora do amor, e uma celebração dos sacramentos reduzida à dimensão cerimonial e, como tal, pouco relacionada à revelação? Faço essa observação, pois não é incomum encontrar pessoas extremamente religiosas, mas, ao mesmo tempo, profundamente egoístas e voltadas para si mesmas.
Aqui está a contundente crítica de Jesus a toda vivência religiosa que não consegue despertar em seus seguidores um coração cheio de compaixão. Por essa razão, Jesus introduz um terceiro personagem. Ele não é um sacerdote nem um levita. Ele nem mesmo pertence à religião do Templo. No entanto, ao chegar, ele vê o ferido, comove-se e aproxima-se dele; faz tudo o que está ao seu alcance para salvar a vida e restaurar a dignidade daquele desconhecido. Essa é a dinâmica que Jesus deseja trazer ao mundo e o critério-chave para se vivenciar a liturgia cristã de forma autêntica.
Se o sinal distintivo de alguém que é cristão é participar dos sacramentos que se originam da encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, que expressa da forma mais elevada a presença salvadora de Deus, então isso jamais poderia ser interpretado como falta de compromisso e compaixão em relação ao próximo e à vida.
O autoengano começa quando os sacramentos são encarados como uma vantagem exclusiva, como um meio simplesmente de obter a misericórdia que Deus me concede, sem compreender a sua intenção primordial, que é a transformação para nos tornarmos semelhantes a Cristo Jesus. Assim, ao considerar os sacramentos como um privilégio e ao vivencia-los cada vez mais de maneira individualista, perigosamente os dissociamos do compromisso com a compaixão e o envolvimento a favor dos necessitados, com os quais o próprio Senhor Jesus se identifica.
Essa era também a preocupação de São João Crisóstomo, que instigava a Igreja da sua época com estas palavras: “Tu fazes memória de Cristo e desprezas o pobre? Tu não ficas horrorizado? Bebeste o Sangue do Senhor e não reconheces teu irmão? Ainda que o tenhas desconhecido antes, deves reconhecê-lo nesta mesa. Tu, que recebeste o pão da vida, não faças obra de morte”.
O amor mútuo é o critério pelo qual a autenticidade da presença visível de Cristo por meio dos sinais sacramentais na liturgia será comprovada: “Nisto conhecerão que sois meus discípulos” (Jo 13,35). Somente uma liturgia que expressa, significa e concretiza o amor de Deus pode ter eficácia no mundo contemporâneo. Este é o testemunho que os seguidores de Cristo são chamados a viver na sociedade atual, assumindo a proteção da vida, a união, a solidariedade e a preservação da criação.