Pe. Felipe de Assunção Soriano, SJ

A vida e obra de São José de Anchieta encontram na devoção mariana suas raízes mais profundas. Seus biógrafos reconhecem sua devoção filial, mas, quando tentam captar as feições de sua mariologia, não superam aquilo que parece dado pela historiografia da época. Sua produção literária mariana, em latim, espanhol e tupi, é considerável, ganhando maior relevo quando tematiza a Imaculada Conceição e a Gloriosa Assunção de Maria.
Para além das tendências da época — como a devoção do rei de Portugal à Senhora da Assunção e a influência do Concílio de Trento sobre a Imaculada Conceição —, sua experiência marial remonta à sua querida terra natal: Tenerife (Canárias). Quando José de Anchieta nasce, em 1534, a ilha já contava com 14 anos de ocupação espanhola. Anchieta conheceu muitos dos naturais de sua ilha, seus costumes tribais e sua devoção à Virgem Maria. Sua relação com esses nativos já o aproxima dos povos do Brasil, unindo esses mares na fonte batismal da Igreja de Rerigtiba.
Cem anos antes da chegada dos espanhóis, os nativos guanches tiveram uma experiência mística com uma imagem de Maria, encontrada no caminho do mar. Segundo os relatos, pastores de ovelhas, caminhando pela praia com seus rebanhos, avistaram uma imagem sobre uma pedra. Conforme seu costume, os guanches não falavam em público com mulher alguma. Querendo seguir seu rumo, onde a areia do mar se estreitava, tiveram que remover a imagem da mulher que interrompia sua passagem.
Nesse esforço, tentaram lançar uma pedra contra a mulher (imagem) e um deles teve a mão paralisada; outro, ao tentar golpeá-la com uma adaga, acabou se cortando. Certos de que a mulher possuía poderes mágicos, recolheram a imagem para a casa de um de seus principais. Como a mulher (imagem) era muda, durante 40 anos nada se soube sobre ela. Certo dia, um dos comerciantes costumeiros, que falava sua língua, visitou a ilha. Convidado a conhecer a mulher, ao entrar onde ela estava, exclamou: “Aqui está a Mãe do Sustentador do Universo” (Mãe de Deus). Os nativos logo entenderam que deveriam reunir os reinos vizinhos e fazer festa diante de tamanha dádiva.
Com a chegada dos espanhóis, a imagem negra dos guanches foi entronizada, deixando a caverna da antiga praia e sendo transferida para uma igreja-catedral. Ganhou um novo nome — Nossa Senhora de Candelária — e uma nova festa: 2 de fevereiro, pois, até então, os guanches sempre celebraram seu dia em 15 de agosto. Portanto, a devoção à Virgem da Assunção, na obra anchietana, remonta à sua devoção de origem entre os guanches. Para ela, como sua primeira ação como Provincial do Brasil (1577–1588), constrói uma catedral entre os indígenas tupiniquins, fundando a Missão de Rerigtiba (1579).
Em 15 de agosto de 1590, José de Anchieta prepara uma peça de teatro para a inauguração da Igreja de Rerigtiba. Neste ato festivo, reúne várias nações tupis, que, com danças, respondem ao chamado da Mãe Feliz. Como vemos na experiência marial dos guanches, a Virgem de Rerigtiba desfila no espetáculo silenciada. É a aldeia que a aclama, pedindo seus favores, como mulher tupinambá e pia fiadora da conversão.
Diante de sua imagem vão os índios principais do Norte e do Sul, que, ao contemplar a beleza de seu rosto e cor, dizem ser ela a mais linda mulher do seu povo. Como acontece com os guanches, a Virgem tem seu nome revelado, sendo aclamada, no final do Auto de Anchieta, como Maria Tupansy (Mãe de Deus). Com o tempo, por força da colonização, a imagem indígena de Rerigtiba foi substituída, mas o espetáculo de sua introdução segue sendo nossa principal testemunha. Portanto, a Virgem de Rerigtiba, celebrada em 15 de agosto na atual cidade de Anchieta/ES era a Virgem da devoção do P. José de Anchieta — aquela que os indígenas do Brasil chamaram – Maria Tupansy.