Luiz Beltrão[1]
Para aqueles que são encantados com a espiritualidade inaciana, é fácil encontrar ecos da proposta de Santo Inácio em diversas realidades, dentro e fora da Igreja. Se a “boca fala do que o coração está cheio”, um coração apaixonado tenderá a ver a realidade sob o prisma daquilo que ama. E, por isso, falará dessa realidade com todo o entusiasmo possível. Vou compartilhar aqui uma dessas percepções do fundo inaciano presente numa realidade não eclesial: o movimento do escotismo. Não que esse movimento tenha se inspirado em Santo Inácio, mas que o mesmo Espírito que o insuflou, moveu o fundador desse movimento em semelhante direção. Vejamos.
O escotismo é um movimento educativo juvenil fundado por Robert Baden-Powell, militar britânico, em 1907, no Reino Unido. Seu objetivo era formar jovens responsáveis, autônomos, solidários e comprometidos com o bem comum, por meio de uma pedagogia ativa e experiencial, ancorada em atividades ao ar livre, autossuperação e serviço comunitário. O movimento rapidamente se espalhou pelo mundo e se organizou em etapas, conforme a faixa etária dos participantes.

O escotismo abrange desde crianças a jovens mais maduros, com propostas específicas de acordo com a faixa etária. No Brasil, o movimento se organiza em quatro ramos. Os “lobinhos” são crianças de aproximadamente 6 a 10 anos, que vivem o escotismo de forma lúdica, inspirados no livro “Mogli – O Menino Lobo”. Os “escoteiros” são jovens entre 11 e 14 anos, envolvidos em atividades práticas, comunitárias e de desenvolvimento pessoal. Os “sêniores” (ou “guias”, no feminino) são adolescentes de 15 a 17 anos que assumem desafios maiores e mais autonomia nas atividades. Já os “pioneiros” são jovens de 18 a 21 anos que colocam sua experiência a serviço da comunidade, em projetos sociais e de liderança.
Por se fundamentar numa pedagogia ativa e experiencial — aprender fazendo, refletir sobre a vivência, descobrir no concreto —, o movimento ressoa de maneira impressionante com a dinâmica mistagógica dos Exercícios Espirituais, que leva a pessoa a um encontro com Deus por meio da experiência concreta, da escuta, do silêncio, da liberdade interior e da tomada de decisão encarnada na vida real. Tanto o escotismo quanto os Exercícios não informam apenas ideias, mas formam sujeitos, integram razão e afetividade, e conduzem a uma liberdade comprometida com a realidade social.
Mas, talvez, a maior semelhança entre ambos se dê nos lemas do movimento. Cada etapa tem o seu. O lema dos lobinhos, “melhor possível”, evoca imediatamente o magis inaciano. Para Inácio, o magis não é simplesmente fazer mais, mas fazer melhor, com mais profundidade, sentido e amor. É a busca de excelência interior, não de performance exterior. Quando um lobinho é chamado a fazer o seu melhor possível, está sendo discretamente educado a sair de si, superar o comodismo e dar o melhor do que tem e do que é — o que, no fundo, é o mesmo convite feito por Inácio nos Exercícios Espirituais.
O lema dos escoteiros, “sempre alerta”, por sua vez, remete ao discernimento. Estar alerta, no escotismo, significa estar atento ao outro, à realidade e às necessidades que surgem a cada instante. É uma prontidão ativa, generosa e vigilante. No discernimento inaciano, estar “atento e disponível” é condição fundamental para reconhecer os movimentos interiores, distinguir os apelos de Deus das falsas consolações, e responder com liberdade e inteireza. Há uma coincidência espiritual nesse chamado à vigilância como forma de serviço.
Já o lema dos sêniores e pioneiros é “servir” — o que ecoa diretamente o “em tudo amar e servir” com que Santo Inácio conclui os Exercícios, na Contemplação para alcançar o amor. O serviço, para Inácio, é expressão do amor mais puro, fruto do encontro pessoal com Deus. Não se trata apenas de uma ação útil ou funcional, mas de uma disposição interior, de quem se deixa conduzir pelo amor maior. Quando o escoteiro serve, ele realiza, com outras palavras e símbolos, a mesma entrega generosa que marca o ideal inaciano.
De fato, não há registros históricos de que Baden-Powell, fundador do escotismo, tenha se inspirado diretamente na espiritualidade inaciana. Ele era um militar britânico, anglicano, atento à formação moral e espiritual dos jovens. Mas é possível reconhecer que muitos dos valores que estruturam o escotismo — a formação integral, o serviço desinteressado, o respeito à interioridade, a pedagogia ativa — estão em consonância com o espírito dos Exercícios Espirituais.
Talvez seja apenas coincidência. Ou talvez seja algo mais profundo. Fico com a segunda opção. Ouso crer que o mesmo Espírito que soprou em Santo Inácio no século XVI, soprou também, com outra linguagem, mas de modo semelhante, em Baden-Powell no século XX. Em tempos distintos, com métodos diversos, ambos buscaram formar pessoas inteiras, comprometidas com o bem comum, com a justiça, com a interioridade e com a transcendência. E isso, convenhamos, não é pouca coisa.
Ver ecos inacianos no escotismo pode ser fruto de uma paixão pessoal. Mas também pode ser um modo legítimo de reconhecer que o Espírito de Deus não se limita às fronteiras explícitas da Igreja. Ele sopra onde quer. E, às vezes, sopra também nas trilhas de uma floresta, nos nós de uma corda, na fogueira de um acampamento, ou no sorriso silencioso de um jovem escoteiro que, discretamente, aprendeu em tudo amar e servir.
E você, onde também percebe ecos da espiritualidade inaciana?
[1] Leigo, casado com a Renata. Pai de Gabi, Caio e Clarissa. Acompanhante de Exercícios Espirituais no Centro Cultural de Brasília – CCB.