Pe. Washington Paranhos, SJ

“Quem ama o Coração de Cristo não pode permanecer
indiferente ao coração ferido do pobre.
Amar a Deus é deixar-se mover por aquilo
que comove o próprio Deus”
(Papa Leão XIV, Dilexi te, n. 17).
“O amor deve pôr-se mais em obras que em palavras”
(Santo Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, n. 230).
Introdução
O magistério do Papa Leão XIV, marcado por uma profunda sensibilidade pastoral e social, encontra na Exortação Apostólica Dilexi te (DT, “Eu te amei”) um dos seus textos mais emblemáticos[1]. Publicada em continuidade à encíclica Dilexit nos, esta exortação nasce do coração do Evangelho e da experiência viva de um Deus que ama e se faz próximo dos pobres, feridos e esquecidos. O Papa propõe uma espiritualidade centrada no Coração de Cristo, cuja compaixão não é mera emoção, mas princípio de transformação pessoal, eclesial e social. Nesse sentido, o Dilexi te é mais que uma reflexão devocional: é um chamado profético à conversão do olhar e do agir, desafiando a Igreja a superar a “cultura da indiferença” (DT n. 5) e a redescobrir, no rosto do pobre, o próprio rosto de Cristo.
Ao insistir que o verdadeiro culto a Deus se manifesta no cuidado concreto com a “carne sofredora de Cristo” (DT n. 17), o Papa Leão XIV insere-se na tradição viva do Evangelho e da Doutrina Social da Igreja, convocando todos os fiéis a uma fé que se encarne na justiça e na solidariedade. Essa exigência de coerência entre fé e vida encontra uma ressonância singular na espiritualidade inaciana, cujo núcleo é o encontro transformador com Cristo que conduz a “amar e servir em tudo” (EE 230). Para Santo Inácio de Loyola, o amor autêntico é sempre operativo, pois “se deve pôr mais em obras que em palavras” (EE 230). Assim, contemplação e ação não se opõem, mas se entrelaçam no seguimento do Cristo pobre e humilde.
Neste horizonte, emerge a tese central deste artigo: a visão de Santo Inácio de Loyola oferece à Igreja – e em particular à Companhia de Jesus – o caminho místico e prático para viver a caridade integral e o compromisso social e político que o Dilexi te exige. A confluência entre a teologia do Coração de Cristo proposta por Leão XIV e a espiritualidade inaciana delineia uma via de santidade e missão que integra o amor orante com o amor operante, a contemplação com a encarnação, a oração com o serviço transformador.
Com essa perspectiva, o artigo desenvolve-se em quatro momentos articulados: (1) o chamado do Coração de Cristo e a resposta inaciana; (2) o Princípio e Fundamento como base teológica do serviço; (3) o discernimento como expressão da opção preferencial pelos pobres; e (4) a contemplação para alcançar o amor como caminho de ação transformadora. Ao final, a conclusão retoma o apelo do Papa por uma Igreja “irmã dos pobres”, reconhecendo na Companhia de Jesus o rosto de um discipulado que une fé, justiça e missão no coração do mundo.
- O chamado do Coração de Cristo e a resposta inaciana
A história da salvação é marcada pela ternura de Deus para com os vulneráveis. Em continuidade com este tema central e aprofundando a reflexão iniciada na encíclica Dilexit nos, o Papa Leão XIV promulgou a Exortação Apostólica Dilexi te (DT, “Eu te amei”), um documento incisivo que resgata a urgência do amor de Cristo que se identifica inseparavelmente com os mais pobres e sofredores (cf. DT n. 17). A Exortação é um vibrante clamor por uma conversão do olhar e por um compromisso com a justiça, exigindo que a Igreja e seus fiéis superem a “cultura da indiferença” (cf. DT n. 5). O Papa sublinha que o verdadeiro culto a Deus se manifesta no cuidado com a “carne sofredora de Cristo”, rejeitando qualquer espiritualidade que pretenda separar o amor vertical a Deus do amor horizontal e prático ao próximo.
Neste horizonte de renovação e missão, a Espiritualidade Inaciana se apresenta como um itinerário providencial. Fundada no encontro transformador de Santo Inácio de Loyola com Cristo, ela se sintetiza na busca pelo “achá-Lo em todas as coisas” para “amar e servir” (cf. EE 230). Essa espiritualidade não é um refúgio do mundo, mas um motor para a inserção apostólica, transformando a contemplação em compromisso.
A tese central deste artigo se consolida na convicção de que a visão de Santo Inácio de Loyola oferece à Igreja – e em especial à Companhia de Jesus – o caminho místico e prático para viver a caridade integral e o compromisso social e político exigidos pelo Dilexi te. A confluência desses dois pilares da fé ilumina o roteiro para uma Igreja que deseja ser, efetivamente, “pobre e para os pobres”.
- Contemplação e encarnação: o Princípio e Fundamento do serviço
A radicalidade da caridade cristã encontra sua âncora metafísica no Princípio e Fundamento dos Exercícios Espirituais (EE 23). Inácio estabelece que o ser humano foi criado para louvar, reverenciar e servir a Deus. Este servir não é uma atividade secundária, mas o propósito mesmo da existência, o critério de uso de todas as coisas criadas. A reverência devida ao Criador implica uma atitude de profunda consideração pela Sua presença no mundo.
O Dilexi te desdobra essa reverência ao afirmar que o amor e o serviço aos pobres não são apenas um mandamento ético, mas um encontro teológico com o Cristo vivo: “Nos pobres, Ele ainda tem algo a nos dizer” (cf. DT n. 5). O Papa insiste que a falta de compromisso é uma falha em reconhecer e adorar a “carne sofredora de Cristo” (cf. DT n. 79, n. 109). A indiferença para com o pobre não é apenas uma omissão da caridade, mas uma falha na própria reverência devida a Deus.
A contemplação inaciana de Cristo, sobretudo nas cenas de Sua Encarnação e vida pública (EE 101-109), ensina a imitar Sua humildade e pobreza. O exercitante é convidado a “pedir a dor com Cristo sofredor” (EE 203), o que leva a uma união de afetos que destrói a distância entre o que ora e aquele que sofre. O pobre torna-se, assim, o Sacramento do Encontro, a via privilegiada para “achá-Lo em todas as coisas”, pois Ele mesmo se fez o último de todos, ensinando que, no serviço ao mais humilde, serve-se ao próprio Senhor (Mt 25, 40).
- Discernimento: a opção preferencial como fruto espiritual
A busca inaciana pelo Magis – o “mais” – é o motor da excelência apostólica. O discernimento dos espíritos (EE 313-336) é o instrumento para encontrar a vontade de Deus nas diversas opções de vida, escolhendo aquilo que “mais conduz ao fim” da pessoa humana. Esse discernimento não é uma técnica fria, mas uma escuta da moção interior para se alinhar ao Coração de Cristo (cf. EE 170-189, Eleição).
Para o Papa Leão XIV, a “opção preferencial pelos pobres” não é uma tese sociológica, mas a manifestação da própria “ação de Deus” que se move pela compaixão (cf. DT n. 16). A Exortação convida a Igreja a discernir onde e como a ação divina está mais evidente e necessitada de cooperação. A resposta, à luz da fé, aponta para as periferias e para os excluídos, onde a fragilidade humana mais clama.
O discernimento inaciano ganha, nesse contexto, uma dimensão estrutural. Ele não questiona apenas a escolha individual, mas a da comunidade e da própria Igreja: “Onde o Senhor nos chama a servir mais e melhor?” A resposta exige, como aponta o Papa, a denúncia e o desmonte das estruturas de pecado (cf. DT n. 112) que produzem miséria e desigualdade, indo além da simples assistência para tocar as causas da injustiça. O Magis se traduz na escolha de um compromisso que seja mais radical, mais exigente e mais transformador da realidade, alinhando a escolha pessoal com o imperativo profético do Evangelho.
- A Contemplação para Alcançar o Amor: do afeto à ação transformadora
O coroamento dos Exercícios é a Contemplação para Alcançar o Amor (EE 230-237), que oferece a definição operativa do amor cristão: o amor não deve ser apenas teórico ou sentimental, mas se manifestar “mais em obras do que em palavras” (EE 230) e concretizar-se na “comunicação de bens” (EE 234). Essa contemplação é o ponto de fusão entre a mística e o apostolado.
O Dilexi te faz eco a essa exigência, insistindo que a fé, se não for traduzida em obras de caridade e de justiça, é morta (cf. Tg 2,14-17). O Papa reitera que a caridade autêntica exige a transformação política e social; o assistencialismo é insuficiente se não for acompanhado da luta por dignidade e por mudanças estruturais (cf. DT n. 115). É preciso “tocar a carne sofredora dos pobres” não apenas com a mão que dá a esmola, mas com a mente e o coração que buscam a justiça.
A espiritualidade inaciana, assim, transcende a devoção individual para gerar um serviço apostólico militante. A “comunicação de bens” (EE 234) adquire uma escala ampla, estendendo-se para além do que se possui individualmente para abarcar o que se é: a própria vida, o talento, a inteligência, o tempo e os recursos devem ser “dados” a serviço dos mais necessitados. O Dilexi te convoca a este dinamismo, exigindo que o amor contemplativo do cristão se traduza em ações concretas que combatam as ideologias de exclusão e a indiferença, tornando-se um fermento de transformação na sociedade.
Conclusão: uma Igreja “Irmã dos Pobres” e a Companhia de Jesus
A Exortação Apostólica Dilexi te é, em essência, a reafirmação do Evangelho e da missão eclesial: o Reino de Deus se constrói no meio dos “últimos”. Ao convidar a ser uma “Igreja pobre e para os pobres” (DT n. 104), o Papa Leão XIV reitera o ideal que Inácio e seus primeiros companheiros buscaram realizar no seu voto de serviço e na dedicação aos mais marginalizados.
A convergência entre a visão profética do Papa e o carisma inaciano é um sinal de que o amor aos pobres não é um apêndice da fé, mas seu critério fundamental de autenticidade. Para os jesuítas, chamados a ser “companheiros de Jesus” e a colocar-se sob a bandeira da cruz, a Dilexi te funciona como um novo mapa do Magis para a contemporaneidade.
A Exortação é o apelo para renovar o voto de serviço e a missão da Companhia em favor da fé e da promoção da justiça, que “não se podem separar” (cf. DT n. 3). Reconhecer o rosto de Cristo nos pobres e nos sofredores (cf. DT n. 79) não é apenas um ato de misericórdia, mas a própria via de salvação e de fidelidade ao carisma. O “Dilexi te” é, em última análise, o convite a fazer da Igreja, e de toda a Companhia de Jesus, a “Irmã dos Pobres” que o mundo de hoje urgentemente necessita.
[1] Nota explicativa: Dilexi te (Exortação Apostólica de Sua Santidade Papa Leão XIV, 2025) foi promulgada em 29 de junho de 2025, solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo. O documento aprofunda o conteúdo cristológico e social da encíclica Dilexit nos (2024), apresentando o amor de Cristo como fundamento da missão eclesial e como critério de discernimento pastoral e político. Cf. LEÃO XIV. Dilexi te: sobre o amor de Cristo e a caridade com os pobres. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2025.