Luiz Beltrão

Alguém aí gosta de química? Calma! Eu também não gosto muito (prefiro biologia!), mas talvez ela nos ajude em uma reflexão interessante sobre o perdão de Deus. Vamos ver se dá bom? Se dá liga?
Na linguagem química, compostos como peróxidos, permanganatos ou percloratos possuem o prefixo “per-”, que indica o nível máximo de oxidação, o estado mais alto de energia ou o potencial mais intenso de reação. São moléculas carregadas, não apenas no sentido técnico, mas quase simbólico: estão cheias até o limite, prestes a doar tudo de si. E se usássemos essa linguagem para pensar o perdão de Deus?
A palavra perdão vem do latim perdonare — composta de per– (totalidade, intensidade) e donare (dar, doar). Ou seja, perdoar é dar tudo, é doar até o fim, é oferecer o dom por inteiro.
Nesse sentido, Deus é o per-doador por excelência. Ele não retém nada para si. É total doação e comunicação de bem, de amor, de alegria, ao ponto de nos doar Seu Filho único para que todo aquele que nele crer (aderir e se confiar) tenha a vida eterna (plena, verdadeira) (Jo 3,16).
Por isso, perdoar não é simplesmente desculpar ou apagar um erro ou uma falta cometida. Entender assim é limitar o alcance do sentido da palavra. Perdão é o dom mais elevado, mais generoso, mais “oxidado” de Deus, que nos preenche até transbordar. É o dom que penetra, desinstala, regenera, move para frente. Por isso, é per-furante, chegando ao mais profundo do ser, preenchendo o abismo em que nossas misérias, nossas debilidades, nossas fraturas mais profundas se encontram com a graça curativa do Pai.
Você já experimentou esse perdão de Deus? Essa totalidade do dom que se derrama e transborda? Que não apenas desculpa o erro, mas regenera, cura, recria e dinamiza a vida até o mais profundo do ser? É a esse ponto que a espiritualidade inaciana quer nos levar.
De fato, a espiritualidade inaciana nos recorda que somos pecadores, quebradiços e frágeis. Saber disso é importante para sempre nos lembrar que nunca nos bastamos ou que já chegamos a um nível ideal de santidade. Mas Santo Inácio nos acrescenta um detalhe essencial: somos pecadores infinitamente amados e perdoados pelo amor regenerativo e curador de Deus. Aqui está o detalhe da coisa. Para Santo Inácio, não é o pecado que nos caracteriza e identifica como seres humanos, mas o perdão e o amor de Deus. Porque, antes do pecado original, fomos tecidos pelo amor original e revestidos da graça e da beleza originais pelas mãos amorosas do Pai.
E como se não bastasse, “Deus nos amou quando ainda éramos pecadores” (cf. Rm 5,8). Fomos reconciliados gratuitamente por um amor que não esperou nossa mudança, mas a gerou. O perdão que recebemos é o dom que nos transforma, que nos desarma, que nos liberta da lógica da retribuição. É dom que atravessa o nosso orgulho e se oferece como graça. Não é condição para o recebimento da graça, mas o movimento primeiro de Deus, que nos ama de graça e nos move com sua graça.
Mas espiritualidade é experiência. Não basta saber, é preciso saborear internamente (EE 2). Os Exercícios Espirituais nos convidam a contemplar o Cristo na Cruz, a “olhar como Cristo morre na cruz, por mim” (EE 53-54). Ali está o PER-DOM supremo. A cruz é o altar em que o dom do amor é oferecido sem medida, mesmo diante da ofensa. Não há defesa. Não há exigência. Só dom. Será a experiência do acolhimento desse dom como origem de tudo, como princípio e fundamento (EE 23), o ponto de partida da vida espiritual segundo Santo Inácio. E só então deixar que brote, do íntimo, o desejo de responder com a vida e perguntar-se: “O que fiz por Cristo? O que faço por Cristo? O que farei por Cristo?” (EE 53).
De fato, quem experimenta esse “per-dom” — esse perdão que excede toda medida (cf. Rm 5,20) — não permanece o mesmo. Ele se torna também per-doador, isto é, alguém capaz de oferecer esse dom em sua forma mais intensa e pura: não por obrigação, mas por superabundância e transbordamento. Como o peróxido que doa oxigênio com potência, o per-doado é agora capaz de dar vida a quem o ofendeu, oxigenar relações envenenadas, libertar os que estão aprisionados pela culpa ou pelo ressentimento, liberar o próprio coração de mágoas, rancores e ressentimentos. E isso traz vida e alegria, para si e para os outros.
Quando perdoamos, não apenas imitamos a Deus — participamos de sua própria vida. O ato de perdoar se torna lugar de encontro com Deus. E nesse gesto, nos tornamos mais humanos, mais livres e mais parecidos com Cristo e seu modo de proceder. A dor que parecia impossível de atravessar se torna caminho de graça. A relação quebrada pode se tornar espaço de ressurreição. A memória ferida pode ser reconciliada, porque perdoar não é esquecer; é escolher não deixar o mal determinar a última palavra.
Apenas conseguiremos essa medida se estivermos transpassados pelo Espírito. E, de fato, podemos estar. Após a ressurreição, Cristo sopra sobre os discípulos e diz: “Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, serão perdoados…” (Jo 20,22-23). O Espírito é o Dom por excelência, pois é o próprio Deus amor que nos configura a Cristo e à sua missão de reconciliação. Não se trata apenas do perdão obtido no sacramento da penitência. Todos, cada um a seu modo, somos chamados a esse ministério de reconciliação da criação.
Por isso, o perdão é apostólico, é força que nos capacita, nos dinamiza e nos envia em missão: reconciliar, reunir, restaurar, curar as feridas de uma humanidade doída e sofredora. É movimento libertador que, por nos ter liberto das amarras da tristeza e da culpa, nos permite discernir com mais liberdade e clareza os movimentos e os apelos de Deus para a nossa vida, em direção ao magis, ao que melhor se identifica com a vontade do Pai.
Perdão, da parte de Deus, é proposta. O transbordamento dele na vida e no mundo vem de nossa resposta, de nosso livre acolhimento desse dom que nos extravasa. Pode não ser uma escolha fácil, a depender de nosso apego à mágoa ou ao passado. Mas, não será uma missão impossível, se tivermos a ajuda necessária. “Dai-me somente o vosso amor e a vossa graça. Isso me basta.” (EE 234). E a graça que nos basta é a de experimentar, em nossa “química” mais profunda, termos sido per-doados para então per-doar.