"Quem quiser reformar o mundo comece por si mesmo."

Santo Inácio de Loyola

Santo Inácio: Contemplando Jesus, alcançou o amor

Este texto se baseia na apresentação feita pela celebração da Festa de Santo Inácio de Loyola, deste ano. O conteúdo, por sua vez, se fundamente no primeiro capítulo da dissertação de mestrado de Pe. Edilberto Brandão, SJ, cujo tema é: A espiritualidade inaciana, fonte inspiradora para “formar homens para os outros” nas escolas de Educação Básica da Companhia de Jesus.

Raízes culturais

Dirijamos o nosso olhar ao ambiente cultural e familiar do ainda Íñigo, principalmente na sua juventude em Arévalo, que foram de fundamental importância na formação do seu carácter, da sua espiritualidade e da influência educativa da Companhia, porque “hoje não podemos compreender as futuras decisões e experiências do fundador da Companhia sem os aprendizados vitais deste período”1.

Não temos muitas informações sobre essa época, mas a Autobiografia a resume logo no início, quando diz que “até os vinte e seis anos de idade, Inácio tinha sido um homem entregue às vaidades do mundo. Tinha bastante prazer, sobretudo, no exercício de armas, com grande e vaidoso desejo de obter honra”. Por outro lado, Íñigo viveu num ambiente que o ajudou a moldar a sua religiosidade, os seus costumes e o seu gosto pela cultura – uma vez que “a etiqueta palaciana e uma atmosfera de ostentação refinada foram escrupulosamente mantidas […] o protocolo palaciano e da corte, a prática administrativa e contábil, as devoções e a vida religiosa, além do sentido cavalheiresco de honra, foram as lições básicas de vida do período castelhano de Íñigo2 .

Percebe-se que Arévalo é, sem dúvida, um local oportuno a ter em conta, quando o que se pretende procurar são as suas raízes culturais. Segundo Peter-Hans Kolvenbach3, “o jovem Íñigo teve o primeiro contato com a cultura não só na casa de sua família, mas ainda mais nos anos em que foi pajem em Arévalo, aproveitando o ambiente muito culto, que reinava na corte do Contador mor de Castela”.

Quando buscamos aprofundar em muitos aspectos de sua vida, esse período “significou renovação e estímulo para muitas novas investigações em duas linhas fundamentais: uma sobre a análise e verificação exaustiva de fontes documentais de primeira mão e outra voltada para a busca de paralelos e influências entre a literatura religiosa e de cavalaria contemporânea, a fim de recriar o húmus cultural que Íñigo de Loyola experimentou”4.

Quando nos referimos à sua personalidade, este período é fundamental na vida do jovem Íñigo, porque exatamente “A idade dos doze aos vinte e seis anos é, segundo a psicologia evolucionista mais básica, decisiva na formação de cada indivíduo e, portanto, um ponto de referência obrigatório quando se trata da vida e do mundo intelectual de cada pessoa […] é verdade que restam pessoas, situações e ensinamentos impossíveis de especificar plenamente, porém, o cotidiano e o historicamente inacessível ficam depositados no caráter do homem, constituindo-o”5.

Deus é antes de tudo sua fonte de inspiração

Para Inácio escrever sua experiência espiritual até chegar ao livro dos Exercícios, Deus é antes de tudo sua fonte de inspiração à qual se refere Dudon: “Sem dúvida, sem a ajuda especial de Deus, eu não teria sido capaz de escrever este livro. É uma observação da bula da canonização. Também é algo óbvio. Esta assistência de Deus continuou depois de Manresa para os acréscimos e retoques feitos nas folhas primitivas… O favor singular que Deus fez ao peregrino em Manresa foi aumentar repentinamente a sua faculdade natural de compreensão, dar-lhe uma inteligência superior da vida espiritual, que lhe permitiu discernir os espíritos e também ordenar sinteticamente um certo número de verdades; verdades que geram a conduta cristã mais generosa. Daí o acento de segurança e força que imprime nos Exercícios”6.

Nos Exercícios Espirituais refletem-se os frutos de muitas experiências fortes de Inácio, que apresentam os traços de Deus em sua vida, entre eles, a Ilustração do Cardoner, que é “o ponto culminante deste ‘ensino’ divino, em que podemos distinguir aquela pessoa desorientada, que busca luz e orientação nos homens, daquela que se sente segura conduzida pela luz divina”7. Conforme a Autobiografia: “certa vez ele ia, por devoção, a uma igreja que estava a mais ou menos um quilômetro e meio de Manresa. Creio que se chamava ‘São Paulo’, no caminho beirando o rio. Ele seguia todo entregue às suas devoções. Sentou-se por um momento, com o rosto voltado para o rio que corria embaixo. Então, estando ali sentado, os olhos do seu entendimento começaram a se abrir. Não que lhe viesse alguma visão, mas ele compreendeu e conheceu numerosas coisas, tanto espirituais como coisas que dizem respeito à fé e às letras. E isso com uma iluminação tão grande que todas elas lhe pareciam novas”8.

Ser mais para o bem do próximo

O MAGIS para Inácio é fazer o melhor, na medida em que “ele tanto aproveitará em todas as coisas espirituais, quanto sair do seu próprio amor, desejo e interesse” [EE 189]. Para alcançar este objetivo, que é um seguimento mais próximo e radical de Jesus Cristo, devemos pôr em prática o pedido de graça, que está na contemplação da Encarnação da segunda semana dos Exercícios Espirituais, que é “pedir o que quero; pedirei aqui conhecimento interno do Senhor que por mim se fez homem, para que mais o ame e o siga” [EE 104].

A Rede inaciana de juventude lançou a pouco tempo, o projeto Ser mais com os demais. E isso está intimamente em sintonia com a proposta inaciana de espiritualidade, que é ser mais para o bem do próximo. Dessa forma podemos dizer que, a origem do MAGIS foi marcada pelo ambiente familiar e cultural de Inácio, no qual o “valer mais” e o “ser melhor” do cavaleiro perfeito eram o paradigma das famílias guipuzcoanas de certa linhagem, e que Íñigo herdou, sem dúvida, dos seus familiares mais velhos. A obra de Hugo Rahner insere Inácio no mundo das relações familiares e da cultura do seu tempo, ambos desejosos de grandeza, como criadores do temperamento do santo. A raiz do MAGIS Inaciano: fazer grandes coisas é a forma primitiva da opção do Princípio e Fundamento “pelo que mais ajuda”. A partir daí, o lema da Companhia de Jesus “Para a maior glória de Deus” fluirá sem esforço”9. Desde o início da Companhia de Jesus, o desejo de Inácio de fazer com que os jesuítas vivessem o MAGIS, estava presente nos documentos da ordem. Numa carta dirigida aos Jesuítas do Colégio de Coimbra, em 7 de maio de 1547, Inácio exorta-os: “Não permita que os filhos deste mundo se aproveitem de você para buscar as coisas temporais com mais cuidado e diligência do que você faz as coisas eternas […]. Não seja, pelo amor de Deus, relutante ou morno. Procure entreter o fervor santo e discreto para trabalhar no estudo tanto das letras como das virtudes; “que com um e outro, um ato intenso vale mais do que mil hesitações, e o que um preguiçoso não consegue em muitos anos, uma pessoa diligente costuma conseguir em pouco tempo”10.

Há, portanto, uma busca pela excelência na formação, que além disso deve ser abrangente seguindo o binômio pietas et eruditio (traduzido como “virtude e letras”). Vale destacar sobre isso o que Nadal coleta das orientações de Inácio, “É digno de nota que aquilo que o Padre Inácio tantas vezes repete, a saber: “Para maior glória divina”, designa o fim último que desejamos; não de qualquer maneira, senão com mais e com o máximo de dedicação em tudo; que é uma graça e força especial concedida pelo Senhor à Companhia”11.

Ser mais para o bem do próximo. Daí destacamos a palavra MAGIS ou “Mais”, onde “Mais não implica uma comparação com outros ou uma medida de progresso, relativamente a um nível absoluto. Pelo contrário, é o desenvolvimento mais completo possível das capacidades individuais de cada pessoa em cada fase da sua vida, juntamente com a vontade de continuar este desenvolvimento ao longo da vida e a motivação para usar as qualidades desenvolvidas ao serviço dos outros”12.

Nesta perspectiva é necessário ampliar a nossa concepção de próximo, ou seja, voltar a nossa atenção para quem está fora do nosso ambiente. À primeira vista pode parecer uma atitude contraditória ou um paradoxo, mas é fundamental perguntar-nos: Quem é o meu próximo? Tal como fez o escriba na passagem do Bom Samaritano.

A pedagogia para a ordem dos afetos

Quando nos referimos à ordenação dos afetos, queremos refletir sobre tudo o que impede o praticante dos Exercícios Espirituais de ser livre para tomar uma decisão na sua vida, seja ela mutável ou imutável. Além disso, essa experiência deve levar o praticante a perceber que ao permanecer com esse afeto desordenado pode prejudicar a si mesmo ou a outras pessoas.

Para ajudar nisso, um dos principais pontos da vivência dos Exercícios é “tirar de si todos os afetos desordenados e, depois de retirados, buscar e encontrar a vontade divina na disposição da própria vida para a saúde do alma” [EE 1].

A partir daí, entende-se que “o homem, com a centralidade radical que a consciência lhe confere. Com a sua inteligência e o poder que dela deriva, o homem tende a dominar o mundo, apropriando-se dele e centrando-o em si mesmo. Contudo, também é um dado da experiência que o homem perde o foco quando se concentra de forma egoísta. O homem é um ser que possui consciência, inteligência e poder. Mas é um ser chamado a sair de si mesmo, a doar-se e a projetar-se aos outros através do amor”13.

O ser humano desordenado fecha-se e vive para si, por isso a espiritualidade inaciana quer fazer com que a pessoa, movida por um amor livre e desinteressado, se abandone e vá ao encontro dos outros, ou seja, ao encontro do próximo. Em Inácio, ordenar os afetos é uma exigência para avançar na experiência espiritual e, assim, “buscar e encontrar a vontade de Deus na própria vida”14.

Convém fazer referência nesse momento a duas contemplações presentes nos Exercícios Espirituais, a saber, a Encarnação e o Nascimento de Jesus Cristo, que refletem a maneira inaciana de conceber o mundo e o espírito presente na Companhia de Jesus. Precisamente, esta visão e espírito têm como pano de fundo o Princípio e fundamento, reconhecendo assim que a plenitude do homem está em “louvar, reverenciar e servir a Deus nosso Senhor e, através disso, salvar a sua alma” [EE 23], começando no aqui e agora da sua existência, através do uso prudente das coisas à sua disposição e também no cuidado de si e do próximo.

Tendo em conta a visão inaciana do mundo, o homem e a mulher devem reconhecer-se como amados por Deus, o que se manifesta numa resposta livre e radical ao chamamento de Deus e colaborar com Ele na obra de salvação. As consequências do pecado impedem que esta resposta ao chamamento de Deus seja automática, ou seja, é necessário um esforço pessoal de cada pessoa para “eliminar todos os afetos desordenados” [EE1].

O amor se traduz em obras

Para Inácio, o encontro com Deus projeta-se para uma ação concreta, como resposta de amor, ou seja, “o amor deve ser colocado mais nas obras do que nas palavras” [EE 230]. Esta atitude tem a sua origem na “auto comunicação” de um Deus de amor, que se revela na Encarnação. Neste ponto, é oportuno referir-se à publicação, em 1976, da Exortação Apostólica “A Evangelização do Mundo Contemporâneo”, de Paulo VI, que “relaciona o processo de evangelização com as buscas de luta pela justiça”15.

Este fato esteve presente nas discussões da Congregação Geral 32ª (CG 32), que elaborou um decreto sobre a justiça: “A missão da Companhia de Jesus hoje é o serviço da fé, da qual a promoção da justiça constitui uma exigência absoluta, pois faz parte da reconciliação dos homens exigida pela reconciliação deles mesmos com Deus”16. O que mobilizou toda a Companhia de Jesus, sua missão apostólica, através da formação de um modo de proceder, em que o binômio fé e justiça fosse o princípio norteador de sua ação no mundo e que o sentido de Deus perdido pudesse ser recuperado.

Isto serve de base para afirmar, com a mesma Congregação Geral, que a missão da Companhia de Jesus deve ser realizada em comunhão com a missão da Igreja: “revelar aos homens o amor de Deus nosso Pai, um amor que se torna promessa de eternidade”.

Um novo passo, que qualifica a justiça no sentido inaciano, foi dado pelas últimas congregações gerais, e em particular pela ideia de reconciliação (com os semelhantes, com a criação e com Deus), que surgiu em documentos oficiais, como resultado da missão apostólica da Companhia de Jesus, na qual “nós, jesuítas, somos chamados a ajudar a curar um mundo ferido, promovendo uma nova forma de produção e consumo que coloque a criação no centro”17.

Para concluir, a Sinodalidade

Temos em consonância a Sinodalidade, um tema tão atual e, ao mesmo tempo, tão importante na nossa Igreja. Ela, como forma eclesial determinante, nos aponta para uma nova dimensão. Mas do que se trata? Segundo Guibert, “entendemos a Sinodalidade como o movimento que se criou na Igreja associado a três termos sugestivos: comunhão, participação e missão. Busca-se uma renovação profunda da instituição eclesiástica”18. Sem dúvida que no âmbito eclesial existe cada vez mais uma clara consciência de trabalharmos em conjunto nos grandes desafios que a sociedade nos propõe.

CITAÇÕES BIBLOGRÁFICAS

  1. Íñigo Arranz. «Arévalo», en DEI I, 194. ↩︎
  2. Arranz, 193 ↩︎
  3. Peter-Hans Kolvenbach. “Pietas et Eruditio”. Na Revista de Espiritualidade Inaciana 38, No. 115 (2007): 13 ↩︎
  4. Arranz, 194-195. ↩︎
  5. Rogelio García Mateo. “La formación castellana de Ignacio de Loyola y su espiritualidad”, Manresa 58 (1986): 375. ↩︎
  6. Dudon, S. Ignace de Loyola (París 1934) apéndice 11 p.627. Citado en: Iparraguirre, I. – Ruiz Jurado, M. (eds.), Obras, 122. ↩︎
  7. Iparraguirre, I. – Ruiz Jurado, M. (eds.), Obras, 122. ↩︎
  8. Autobiografia 30. ↩︎
  9. Luis de Diego. «Magis (Más)», en DEI II, 1155-1156. ↩︎
  10. Epp I, 499. Grupo de Espiritualidad Ignaciana (ed.), Escritos Esenciales de los primeros jesuitas de Ignacio a Ribadeneira, Madrid-Santander-Bilbao: UPCo-Sal Terrae-Mensajero, 2017, 172. ↩︎
  11. Nadal V, 93-94; Pláticas, 86-87. GEI, Escritos Esenciales, 566-567. ↩︎
  12. José Alberto Mesa, 339. ↩︎
  13. Mesa, 266. ↩︎
  14. Epp VII, 436. Citado en Luis Maria García Domínguez. «Afección desordenada», en DEI I, 92. ↩︎
  15. Klein, 72. ↩︎
  16. CG 32, d.4, 2.  ↩︎
  17. “Sanar un mundo herido” Promotio Iustitiae 106. Citado en CG 36, d.1, 29. ↩︎
  18. José María Guibert. “Construir juntos: aportes del liderazgo ignaciano a la sinodalidad”, Manresa 94 (2022): 359. ↩︎