"Quem quiser reformar o mundo comece por si mesmo."

Santo Inácio de Loyola

Eu ouço – poesia e espiritualidade como escuta e atenção

*Beatriz Avila Vasconcelos 

“A experiência espiritual é uma experiência de abertura, transfronteiriça, onde aprendemos a não temer o vazio, a indeterminação. A atitude espiritual mais importante é a atenção, como disponibilidade para se deixar tocar e surpreender, pelo que é a epifania do ser, pela capacidade da realidade se tornar significativa” 

(José Tolentino Mendonça)

“Bem-aventurados os vossos ouvidos porque ouvem” 

(Mt 13,16)

A relação entre espiritualidade e poesia é íntima. Talvez nem devêssemos falar de uma relação, supondo-se, com isto, duas coisas distintas que entram em diálogo, uma diante da “outra”. É realmente preciso, mesmo que os vocábulos distintos as façam parecer duas, entendê-las como modos de realizar uma substância única. Poesia e espiritualidade convergem para uma mesma moção: a busca por transcendência. Geram-se, a partir da mesma energia ígnea e não existem sem ardência. Ambas são atingimento e dizem respeito ao humano que, ferido em suas limitações, anseia pelo mais, pelo ir além e, a partir desta condição é desafiado a abrir-se para uma outra comunicabilidade com o mundo, da qual ele não seja o senhor do logos, de uma linguagem controlada por sua neurose civilizatória, mas sim medium, ser em estado de abertura capaz de deixar passar por todo o seu corpo, e não apenas por seu intelecto, a linguagem do divino. 

Nesta tentativa de compreender a identidade da espiritualidade e da poesia parece mais natural pensar que essa segunda seja uma forma de espiritualidade. Muitos poetas e místicos firmaram este entendimento por meio de sua produção poética e de seu modo de vida, de Rumi a Santa Tereza de Ávila; dos haicaistas Matsuo Basho e Kobayashi Issa, à poesia da “realidade das cousas” de Alberto Caieiro, William Carlos Williams e Sophia de Mello Breyner Andresen. Mas, ousarei aqui tensionar o mais natural e pensar em movimento contrário, para tentar entender não a poesia como espiritualidade, mas a espiritualidade como poesia. A implicação mais desafiadora está no fato de que, entendida como poesia, a espiritualidade precisa ser compreendida radicalmente como linguagem. E qual seria a linguagem da espiritualidade-poesia? Como se constitui? Em que difere de uma linguagem prosaica e informativa? Longe de querer responder a tais perguntas, estão elas aqui para provocar uma reflexão sobre a espiritualidade e a poesia a partir de uma crise da linguagem (pois todo o poético nasce desta crise). Neste sentido, a busca espiritual pode ser entendida como uma busca de linguagem: surge quando, esgotados diante de formas de expressão e de vida que se esvaziaram, diante de falas e gestos que se petrificaram em fórmulas mortas (de dizer e de ser), incapazes de tocar e atingir o outro e a nós, incapazes ao amor, somos impelidos, num ímpeto de vida, a ir além em direção a um encontro, que é o encontro com o silêncio, único lugar em que podemos restaurar a linguagem desgastada para que ela recobre sentido. Não o sentido meramente semântico, congelado nos vocábulos pelas convenções da linguagem, mas o sentido que se faz sentido, sentido-presença que nos atinge, nos fere e nos vivifica. Sentido não decifrado, sentido pressentido, sentido indeterminado, pois se deixa sentir naquela “nuvem do não saber” em que os poetas e os místicos imergem, nada vendo, nada sabendo e tudo sendo, em plena presença poética. 

Gostaria de aceitar, diante desta crise de linguagem da qual a poesia, como a espiritualidade se erigem, um convite do historiador da Literatura Hans-Ulrich Gumbrecht, que pensando a partir de Heiddeger, fala em recusar a construção de um conhecimento (Erkenntnis) para poder ficar, em “calma compostura” (Gelassenheit), quieto por um momento: “o que espero conseguir com a Arte (ou por meio de qualquer outro recurso) é ficar quieto por um momento, é não ter a necessidade de produzir novos conceitos o tempo todo e de transformar a mim mesmo ainda uma vez” (Gumbrecht 2016, p. 34). 

A poesia – movimentando-se na crise da linguagem – faz resistência justamente à produção de conceitos e tem o silêncio como o seu cerne. Diante do poético não temos nada a fazer, nem a dizer, a não ser “ficarmos quietos por um momento”, pois a poesia é linguagem da contemplação, não da decifração. Em seu poema: “Alguns gostam de poesia”, a poeta polonesa Wislawa Szymborska pergunta: 

Mas o que é isso, poesia. 
Muita resposta vaga 
já foi dada a essa pergunta. 
Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso 
como a uma tábua de salvação. (SZYMBORSKA, 2011)

Inapreensível, a dimensão espiritual da vida, tal como a poesia, também não se deixa encerrar em uma resposta fechada (admite apenas respostas vagas, isto é, respostas com vacuum, espaço vazio, espaço de silêncio e de mistério), mas ainda que não saibamos exatamente o que ela seja, ainda que, como a poeta, digamos em angústia reiterada “eu não sei e não sei”, sabemos, com a força de uma certeza que agarra, que nela está nossa salvação. 

Gumbrecht (2016), baseando-se em estudos de Lucy Alford (2019), define a poesia como “modo específico de atenção” (p.83). E continua: “Atenção significa, primeiramente, uma abertura da mente para o mundo (…), uma função específica da consciência” (p. 86). Em sentido similar, o cineasta russo Andrei Tarkovski, que se considerava antes um poeta, também compreende a poesia enquanto “uma consciência do mundo, uma forma específica de relacionamento com a realidade. Assim, a poesia torna-se uma filosofia que conduz o homem ao longo de toda a sua vida” (TARKOVSKI, 2010, p. 18). 

Atenção, abertura e consciência são elementos que perpassam tanto a poesia como a espiritualidade, e que nos possibilitam um tipo de conhecimento muito especial: não aquele fundado em uma techne, um conhecimento passível de ser exposto por um método e de ser aprendido por lições, nem mesmo em um conhecimento fundado em um logos ordenado que sustenta um discurso, mas um conhecimento silencioso, inapreensível, que surge de forma silente quando a pessoa se coloca na posição de “não sei e não sei”, que nada mais é que a posição radical de escuta, posição que o próprio Iaweh exigiu ao povo de Israel em seu forte shemá (Dt. 6, 4-5). É a atitude de escuta – exigida na relação dialogal de Deus com seu povo – que nos possibilita ouvir seu mandamento de amor. Podemos dizer que a escuta é aquele “modo específico de atenção” (Alford/Gumbrecht), aquela “consciência do mundo e forma específica de relacionamento com a realidade” (Tarkovski) que nos abre ao amor de Deus. Trata-se, na escuta, de uma atitude poético-espiritual de silêncio atento que permite a entrega plena de si ao mundo para “amar de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças”, amor sem o qual nem a poesia nem a espiritualidade podem subsistir. Na atenção da escuta poética o poeta, ficando quieto por um momento, cria condições para o encontro amoroso com o outro. Como diz Fernando Pessoa no poema “Não sei quantas almas tenho”: “atento ao que sou e vejo /torno-me eles e não eu” (PESSOA, 2019). 

Também Sophia de Mello Breyner Andresen, em sua Arte Poética IV, percebe um elo direto entre escuta, atenção e criação poética: 

Pensava que os poemas não eram escritos por ninguém, que existiam em si mesmos, por si mesmos, que eram como que um elemento do natural, que estavam suspensos, imanentes. E que bastaria estar muito quieta, calada e atenta para os ouvir. Desse encontro inicial ficou em mim a noção de que fazer versos é estar atento e de que o poeta é um escutador (ANDRESEN, 1960)

A espiritualidade entendida como poesia é semelhante à “espiritualidade do escutador”, daquele que, “muito quieto, calado e atento” ao mundo, escuta a voz e o silêncio de Deus “sob” (e aqui a preposição é significativa) “a crosta das pedras” (NERVAL, 1991), encontrando-se “com o mistério das coisas por baixo das coisas e dos seres” (PESSOA, 2019).

Nesta atitude de escuta ao poema como revelação do sentido divino, o poema não é uma criação, mas um acontecimento: “Aconteceu-me um poema”, diz Fernando Pessoa citado por Sophia de Mello (ANDRESEN, 1960), indicando que o poema, tal como a vida espiritual, não é produto, mas dom àquele que espera, que silencia, que escuta a voz imanente da divindade. Como “escutador”, o poeta torna-se verdadeiro discípulo do mundo e pode dizer como o profeta Isaías: “ele (o Senhor) me desperta cada manhã e me excita o ouvido, para prestar atenção como um discípulo” (Is 50,4). 

Como escuta e atenção, tanto a poesia quanto a espiritualidade possibilitam ao ser humano colocar-se no meio de uma relação de amor: com Deus – que nos abre os ouvidos (Is 50,5) – e, consequentemente, com o próximo – que interpela com a sua voz. Assim Whalt Whitman, no seu célebre poema I hear America Singing /Eu ouço a América a cantar, busca abarcar, em sua escuta universal de poeta, as variadas canções dos trabalhadores e trabalhadoras da América. Neste poema, iniciado pela expressão “eu ouço” (I hear), entramos em contato com um poeta “todo ouvidos”, capaz de escutar as inúmeras canções dos seres humanos em seus trabalhos, em seu cotidiano, em suas alegrias, para, nesta “doação ouvinte”, passar, ele mesmo a pertencer ao que ouve: 

Eu ouço a América a cantar, as variadas canções eu ouço, 
As dos mecânicos, cada um cantando a sua, como deve ser, alegre e forte, 
O carpinteiro a cantar a dele, enquanto mede sua tábua ou viga, 
O pedreiro a cantar a dele, enquanto se prepara para o trabalho ou deixa o trabalho,
O barqueiro a cantar no barco o que lhe pertence, o marujo a cantar no convés do vapor, 
O sapateiro a cantar sentado em seu banco, o chapeleiro a cantar de pé, 
A canção do lenhador, a do lavrador a caminho, pela manhã, ou na pausa do meio-dia ou ao pôr do sol,  
O delicioso canto da mãe, ou da jovem esposa ao trabalho, ou da moça costurando ou lavando, 
Cada qual cantando o que pertence a ele ou a ela e a ninguém mais, 
De dia o que pertence ao dia – de noite a festinha de jovens companheiros, robustos, amigáveis, 
A cantar abertamente suas fortes canções melodiosas.
(tradução livre) (WHITMAN, 2017). 

Neste “eu ouço” atento e aberto, o poeta comunga com toda a humanidade, “pois cada átomo que pertence a mim pertence a você”, diz Whitman no seu célebre Song of Myself / Canção de Mim Mesmo (WHITMAN, 2017). Nesta escuta, torna-se um discípulo amado da vida, aproximando-se dela, recostando-se a seu peito em silêncio para ouvir os seus cantos recônditos. E, nesta intimidade, pode amá-la “de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todas as suas forças” (Dt. 6,5) . Trata-se de uma capacidade de escuta atenta que repousa na capacidade de ficarmos quietos por um momento para que possamos fazer, enfim, a escuta do próprio canto de si mesmo, ao qual Deus insistentemente nos remete, e que é o fruto mais luminoso da poesia e da vida espiritual.

*Leiga inaciana, professora do Bacharelado em Cinema e Audiovisual e do Mestrado em Cinema e Artes do Vídeo da Universidade Estadual do Paraná/FAP. Tem formação em Letras, com doutorado em Filologia Clássica pela Universidade Humboldt de Berlim (Alemanha). Desenvolve pesquisas sobre as relações entre cinema e poesia e se dedica a estudos da imagem, em sua relação com a linguagem, a cultura e o sensível. Escreve poesia e dramaturgia. Mora em Curitiba (PR).

Referências

ALFORD, Lucy. Forms of Poetic Attention. New York: Columbia University Press, 2019.

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner Andresen. “Poesia e Realidade”. Colóquio. Revista de Artes e Letras, 8: pp. 53-54, 1960. 

PESSOA, Fernando. Obra Completa de Álvaro de Campos. Lisboa, Tinta-da-china, 2019.

MENDONÇA, José Tolentino. “Espiritualidade da condição precária”. Conferência pronunciada na 16.ª Jornada Nacional da Pastoral da Cultura, Fátima, 2022. Trecho citado disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/619067-cardeal-jose-tolentino-mendonca-viver-a-espiritualidade-da-condicao-precaria-convida-a-habitar-o-entre-e-a-caminhar-de-margem-em-margem 

NERVAL, Gérard. Aurélia. Tradução e prefácio Luís Augusto Contador Borges. São Paulo: Iluminuras, 1991.

GUMBRECHT, Hans-Ulrich. Serenidade, presença e poesia. Belo Horizonte: Relicário, 2016. 

SZYMBORSKA, Wisława. Poemas. Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 

TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o Tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2010. 

WHITMAN, Walt. Leaves of Grass. Penguin Clothbound Poetry. London, England: Penguin Classics, 2017.