Luiz Beltrão*
Semana agitada. Fomos em um dia ao musical Ópera Caymmar, inspirado nas músicas de Dorival Caymmi, e, em outro, a um show das bandas Ira, Barão Vermelho e Paralamas do Sucesso. Saímos, eu e minha esposa, transbordantes de emoção, juntamente com amigos e familiares que estavam conosco. Cada artista expressando seu dom, seu talento, dando o melhor de si para o público, que correspondia com entusiasmo. Um deles, do Barão Vermelho, comentou, realizado: – Estamos há 40 anos fazendo o que gostamos! Por sua vez, Danilo Caymmi, que cantou no musical em homenagem a seu pai, disse que desistiu de estudar arquitetura, para se dedicar à música, por ter ali encontrado o seu caminho.
E você: faz o que gosta? Está realizado/a no caminho que escolheu? Encontrou o seu caminho ou o seu lugar no mundo? Ao menos, está em busca dele? Assuntos caros à espiritualidade de Santo Inácio.
Aqueles artistas encontraram o seu caminho. Não por causa do sucesso que alcançaram, mas pela realização que experimentam ao subir ao palco e se apresentarem do modo que se apresentam. Mas, se encontraram, significa que fizeram uma escolha, uma aposta, apesar dos conselhos contrários que certamente ouviram de inúmeras pessoas, ainda que bem-intencionadas. Escolhas implicam renúncias.
Até aqui, falamos de escolhas profissionais. Importantes, sem dúvida. Porém, há outras, de âmbito mais profundo. Referimo-nos ao plano existencial: do sentido, da realização mais profunda, do propósito da vida. Afinal, não nascemos só para trabalhar.
Discernimento será a chave mestra, o dom por excelência a nos situar na correta perspectiva de nossa realização. Como um ser humano se realiza? Sendo mais humano; plenamente humano. E quem foi ser humano por excelência? A fé nos apresenta a resposta: Jesus Cristo; o Ser Humano, a humanidade redimida, o Novo Homem, primícias da nova criação. Se vivermos e morrermos como ele, como ele ressuscitaremos. Significa dizer que ele já nos deixou mapeado o caminho: fazermos nossas as suas opções, nossas as suas causas, nossas as suas escolhas, nosso o seu modo de proceder – de amor, entrega e serviço. “Pois quem quiser salvar a sua vida irá perdê-la; e quem perder sua vida por causa de mim, a encontrará” (Mt 16,25).
Discernimento será o dom e a graça que servirão como bússola interna a nos indicar se estamos, ou não, orientando-nos, em ações, valores, sentimentos, critérios e escolhas no rumo certo, que é o Cristo, a Nova Criação. Por isso, não se trata de um dom que se emprega apenas na hora da tomada de decisões, mas é algo constante, ininterrupto, para a vida toda. É um modo de ser. Esse dom poderá soar como voz suave, a confirmar cada passo. Ou, ao contrário, parecer goteira, que não cessa à noite, incomodando, apesar de um lado nosso querer fazê-la calar.
Mas, é um dom que será necessário cultivar, para que nos tornemos mais familiares a ele. A Bíblia conta a passagem em que o jovem Samuel, não familiarizado com a voz de Deus, ouviu por três vezes o Senhor o chamar, sem saber quem era. Ainda bem que Samuel era tutorado pelo sacerdote Eli, mais sábio e experiente, que o orientou a responder a Deus, na terceira vez (1 Sm 3). Nem sempre teremos um Eli por perto.
Por meio do discernimento, vamos aprendendo a escutar Deus, a reconhecer sua voz, a descobrir a sua vontade a nosso respeito e a nossa vontade a nosso próprio respeito. E a identificar essas duas vontades. Pois, se avançarmos profundamente na amizade e na identificação com o Senhor, perceberemos que a vontade mais profunda de Deus para nós não é diferente da nossa vontade mais profunda a nosso respeito.
O sinal distintivo de termos encontrado o nosso lugar no mundo ou de estarmos no caminho certo será uma alegria profunda e duradoura, uma paz que o mundo não é capaz de dar, que Santo Inácio chama de consolação. É a sensação dos discípulos de Emaús, do “coração arder”, a mesma que transbordou em Maria e a fez cantar o Magnificat e que, no momento da dor mais profunda, será capaz de mantê-la de pé (Jo 19,25).
A “Inácio-dica” de hoje é avaliar como está a realização do seu caminho. Se ainda há escolhas significativas a serem feitas ou se decisões importantes estão sendo tomadas sem maiores consequências. Ou mesmo se há mudanças na maneira de ser, de agir e de pensar, reparos a serem feitos dentro do próprio caminho já traçado, para que ele seja percorrido de maneira mais fluida, sem tantos solavancos e com mais alegria. A depender da resposta, um novo discernimento se abrirá: avançar, ou não, na escola da liberdade, da escuta da voz de Deus. Nessa escola, Inácio tem algo a ensinar, pois Deus mesmo foi seu professor e ele, para nossa sorte, aluno aplicado.
LUIZ BELTRÃO
Leigo inaciano, casado, pai de três filhos. Consultor Legislativo do Senado Federal. Biólogo e Mestre em Ciências Florestais. Acompanhante de Exercícios Espirituais. Nas horas vagas, escritor, músico e poeta.