No final do ano passado – sou jornalista, e sei que começar um texto no passado é praticamente uma sentença de não-leitura, mas como estou falando com pessoas que sabem o valor da memória, arrisco-me – fui a Roma entregar a minha tese de doutorado ao Papa Francisco, cujo tema era ele mesmo e o seu pensamento. Tive a oportunidade, então, de visitar a Casa Geral da Companhia de Jesus, acompanhado de amigos jesuítas – eu, que fui formado pela Unicap e tinha pesquisado um papa forjado na espiritualidade inaciana, estava como em um parque de diversão.
Após o almoço, levaram-me para conhecer o teto de onde se vê a cúpula de São Pedro, o lugarzinho do café, o acervo, a biblioteca e as capelas, ambas belíssimas. Porém, foi quando saí de uma delas que algo me chamou a atenção – uma imagem de Santo Inácio de Loyola – com uma inscrição: ite inflammate omnia. Ou, em um português contido, “ide e inflamai tudo”, ao que eu preferi acrescentar: “vão e coloquem fogo em todas as coisas”.
Naquele momento, pensei em quantos jesuítas devem ter saído daquela capela, após os famosos longos anos de formação, enviados para as muitas terras de missão, inflamados por dentro e inflamadores de tudo. Quantos não devem ter olhado para aquela imagem de Inácio e se inspirado nele para ganhar almas para Deus. Quantos não devem ter feito belos propósitos de sacrifício e santidade. Aquela imagem, gosto de pensar, é como uma bandeira que o santo confia a quem sai dali, inclusive para mim, que, mesmo não sendo jesuíta, sinto-me unido a Inácio e aos seus.
Agora, no ano de celebração pelos 500 anos da peregrinação do Peregrino a Jerusalém, temos a oportunidade de contemplar, mais do que ver – sei que você sabe o valor dessa palavra – como se deu, nele mesmo, esse inflamar, esse fogo. De fato, não é possível dissociar o Inácio que envia os seus companheiros para colocar fogo em todas as coisas do jovem que, aos poucos, foi sendo abrasado e consumido por um fogo espiritual. Tendo presente a rica biografia desse personagem, poderíamos ruminar dezenas de ocasiões, mas vamos procurar nos deter na viagem para Jerusalém.
Aqui, eu já devo pedir desculpas. Inácio não fez uma viagem. De fato, essa palavra não diz o que queremos dizer, e quando falamos em alguém que discernia as palavras que usava, é preciso movê-las como quem vai catar feijão, suavemente, nas pontas dos dedos, separando o alimento das impurezas.
Inácio fez uma peregrinação, e isso é muito mais do que um mero deslocamento. Porque ele não tinha como objetivo simplesmente chegar, mas a própria travessia. Logo cedo, aquele rapaz percebeu – como está registrado em seu relato autobiográfico – que era preciso “parar a pensar”. Nada mais estranho à nossa geração que, em geral, nas suas viagens, não pára, e muito menos para pensar. Aqui, eu gostaria de partilhar uma convicção: o tempo de pandemia, creio, não gerou em nós, enquanto sociedade, mudanças importantes uma vez que, enquanto vivíamos aquela crise, não parávamos para pensar. Ao contrário, distraíamo-nos, na ilusão de que, não pensando, não sentimos, e não sentindo, não sofremos, e não sofrendo, está tudo bem.
O Peregrino fez uma opção diferente: na crise, mergulhou nela. Não para ficar nela, mas para atravessá-la. Sabe quando nós somos crianças e aprendemos que, no mar, diante de uma onda grande, você a vence mergulhando nela? Foi o que Inácio fez: mergulhou. E optou por fazer isso caminhando, atravessando. Os quilômetros que o separavam de Jerusalém, no fundo, era o espaço que o separava de si, de Deus e dos outros. Inácio peregrinou não para sair, mas para entrar. E, assim, fez a descoberta dessa coisa paradoxal da vida espiritual: quando mais se entra em si, mais se é possível sair de si mesmo para encontrar Deus e os demais.
É isso o que torna possível que ele troque de roupa com o mendigo, é assim que ele tem a iluminação às margens do Rio Cardoner. Vai se tornando um homem, segundo Laínez, que “começou a ver com outros olhos todas as coisas”. Porque decidiu “parar a pensar” e experimentar interiormente todas as coisas, fazendo espiritualmente o trabalho de catador de feijões/moções, enquanto vai soprando sobre aquelas fagulhas que vão se tornando chamas. Fogo que, hoje, é tão ou mais necessário do que no seu tempo. Por isso, todos nós, que de algum modo fomos inflamados por aproximação a Inácio, temos a oportunidade, o privilégio e o dever de fazer nossas peregrinações para Jerusalém – sejam elas quais forem – para acendermos dentro de nós aquele mesmo fogo.
Para que cada um se preencha da mensagem daquela imagem de Inácio, lá em Roma, espalhando aos quatro cantos do mundo: ite inflammate omnia. Uma tocha que só é possível repassar aquele que antes deixou-se inflamar.